Quase metade dos estados do país não divulga as raças das pessoas mortas pela polícia no primeiro semestre deste ano. E, entre os que divulgam, os dados apresentam falhas, já que mais de 40% dos mortos estão com a raça não informada. Considerando apenas os casos disponibilizados de forma completa, os dados apontam que mais de 75% das pessoas mortas por policiais são negras.
É o que mostra um levantamento inédito do G1 feito com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal. Foram solicitados os casos de “confrontos com civis ou lesões não naturais com intencionalidade” envolvendo policiais na ativa. Os pedidos foram feitos para as secretarias da Segurança Pública dos estados por meio da Lei de Acesso à Informação e das assessorias de imprensa.
Com exceção de Goiás, que não divulga nenhuma informação, todos os estados informam a quantidade de pessoas mortas pela polícia no primeiro semestre deste ano: mais de 3,1 mil mortos, um aumento de 7% em relação ao mesmo período do ano passado.
Entretanto, dez estados não divulgam as mortes em confronto policial por raça, informação que também foi solicitada. Além disso, Minas Gerais informa os recortes de raça apenas para as mortes cometidas por policiais civis, e não por policiais militares. Assim, com Goiás, são 12 os estados que não divulgam as informações raciais de forma completa para o primeiro semestre deste ano. O levantamento mostra que:
- O país teve 3.148 pessoas mortas por policiais no primeiro semestre de 2020 (sem Goiás)
- 12 estados não divulgam os dados de raça dessas vítimas
- 1.561 casos (49,6% do total) aconteceram em estados que divulgaram as mortes por raça
- Desses casos, 663 (42,5%) constam apenas como raça “não identificada”
- Dos 898 que, de fato, têm a informação de raça, 678 são negros (75,5%)
O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Segundo Dennis Pacheco, pesquisador do FBSP, a coleta e disponibilização de dados de raça é importante para entender a atuação das forças de segurança no país.
“É impossível entender a intensidade da atuação policial sem mensurar ao longo do tempo os números em relação às vítimas mortas em decorrência de confronto. E, sem isso, é impossível fazer políticas públicas”, diz Dennis Pacheco.
As dificuldades, porém, são muitas. Além da não divulgação dos dados, a falta de padronização chama a atenção. Há casos em que “albino” foi considerado uma raça, por exemplo, sendo que o albinismo é uma doença, e não uma categoria racial. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística trabalha com as seguintes opções: branca, preta, parda, indígena ou amarela.
No levantamento do primeiro semestre de 2020, porém, não houve nenhum caso enquadrado como “indígena” ou “amarelo”. Isso não quer dizer que nenhuma pessoa indígena ou amarela foi, de fato, morta pela polícia. Como não existe uma padronização oficial de preenchimento, elas podem ter sido categorizadas como pardas ou podem constar da categoria “não informado”.
A Secretaria de Segurança de Mato Grosso afirma, inclusive, que o registro do campo de raça e cor não é obrigatório no boletim de ocorrência. Por isso, as informações acabam ficando subnotificadas, não representando, de fato, o perfil racial das pessoas envolvidas nos casos. Por isso, o estado não divulga as informações.
O Ceará também afirma que o campo de raça não é preenchido “em razão da subjetividade da informação, o que gera uma inconsistência nos dados, impossibilitando a geração de uma estatística fiel ao cenário”.
Mesmo em estados que divulgam os dados, é possível verificar essa inconsistência ou mesmo subnotificação. Em três estados, por exemplo, o percentual de vítimas com raça “não identificada” está acima de 60%: Amazonas, Pará e Bahia.
Pacheco levanta algumas hipóteses por trás do não preenchimento adequado de raça. “Pode ser que determinados delegados preencham com mais frequência o campo e outros tenham mais resistência”, diz. “Deixar o campo de raça como ‘não identificada’ não é muito diferente de deixar em branco. Acaba caindo na questão de não existir obrigatoriedade do preenchimento.”
Mesmo assim, o pesquisador insiste na importância da categorização racial. “Entendo que exista uma complicação que todos os operadores de políticas públicas enfrentam em relação a determinação de identidade racial. É um problema brasileiro histórico. Mas eles têm muitas alternativas. Não dá pra dizer que é difícil”, afirma Pacheco.
“Se é possível implementar bancas em universidades para saber se tem fraude nas cotas, é possível fazer algo na área do crime. Talvez seja possível recorrer às famílias”, diz. Há exemplos, porém, da melhora da coleta e disponibilização dos recortes raciais no Brasil. O Amapá não possui estes dados para os casos de pessoas mortas por policiais no primeiro semestre de 2019. Já para este ano, tem o recorte de raça.
O governo afirma que uma troca de sistemas possibilitou a disponibilização das informações. “No primeiro semestre de 2019, só estavam disponíveis as informações de letalidade e vitimização policial no Sistema Nacional de Estatísticas Policiais e Justiça Criminal, o qual não contemplava as informações das vítimas relacionadas à sua raça/cor. No primeiro semestre de 2020, praticamente todo o estado do Amapá já opera o sistema Procedimentos Policiais Eletrônicos (PPe), no qual é possível obter as informações referentes à raça/cor das vítimas.”
Mortalidade negra e racismo
Mesmo com falhas, os dados disponíveis de raça mostram mostram um lado já conhecido dos indicadores de violência no país: a maior parte dos mortos é negra. Dos 898 casos que apresentam, de fato, informações da raça dos envolvidos, 577 são pardos e 101 são pretos. Seguindo classificação do IBGE, juntos, pretos e pardos constituem os negros. Assim, 678 das 898 pessoas mortas pela polícia são negras, ou 75,5% do total.
“É um padrão que se repete. Em qualquer análise de letalidade, a maioria das vítimas é negra. Não é nenhuma surpresa”, afirma Pacheco. Inclusive, a proporção é próxima dos dados divulgados pelo Atlas da Violência no final de agosto. Segundo a publicação, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil em 2018 eram negras.
O estudo destaca a discrepância entre os indicadores de negros e não negros (brancos, amarelos e indígenas). Enquanto que o assassinato de negros cresceu 11,5% em dez anos no Brasil, o de não negros caiu 12,9% no mesmo período.
“Esses números nos ajudam a traduzir em números esse enorme abismo que existe entre a população negra e não negra, e a entender um pouco melhor sobre como o racismo se manifesta e o quanto estamos completamente insensíveis por isso”, diz Samira Bueno, do FBSP.
Como principal motivo por trás da alta letalidade de negros, Pacheco cita o racismo. Segundo ele, porém, é preciso separar a ideia do racismo como atitude individual da ideia do racismo como elemento que molda comportamentos e estratégias de intervenção do estado — ou seja, o racismo estrutural.
“Na perspectiva do racismo estrutural, faz sentido entender que a noção de suspeição, que é aquilo que inicia a abordagem, sempre remete a elementos culturais e traços físicos localizados nos territórios e culturas negras e periféricas”, diz o pesquisador.
Segundo ele, esses elementos acabam formando a concepção de “suspeito padrão” da polícia. “Essa concepção pode ser moldada, ela é muito subjetiva. O policial é que define o que é suspeito a partir da sua experiência na rua”, diz. “A gente tem no Brasil essa perspectiva de que vidas negras talvez valham menos, e isso reverbera na atividade policial”, afirma Pacheco. G1