Aeródromos privados no interior respondem por todos os acidentes aéreos na Bahia em 2021 – foram 7, sem mortes, mas com um piloto ferido, de acordo com o painel Sipaer (Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos). Este foi o maior número de ocorrências do tipo em cinco anos, e vai contra a tendência nacional: o Brasil fechou o ano com 139 acidentes, menor número desde 2011.

Outro dado chama atenção – todos os acidentes estão concentrados em municípios do Oeste baiano, onde há intensa atividade do agronegócio: São Desidério, com dois, Barreiras, Morpará, Correntina, Riachão das Neves e Luís Eduardo Magalhães onde, aliás, na quinta-feira, aconteceu mais um acidente, desta vez com vítima fatal. O episódio resultou na morte de Bruno Gomes de Oliveira, 35 anos, que pilotava a aeronave quando colidiu com fiação elétrica.

Os registros ocorreram em pistas menores, com mais restrições quanto a decolagem e pouso, e, também, com aviões de pequeno porte. Essas aeronaves podem transportar passageiros, cargas, ou realizar atividades agrícolas. O único caso com feridos, no ano passado, foi justamente num voo desse tipo, em março: numa fazenda em Correntina, a aeronave se chocou com uma lavoura de soja ao tentar decolar. O piloto teve lesões leves, e o avião, danos substanciais.

Isso quer dizer que aeródromos privados e aviões particulares na Bahia são perigosos? Não necessariamente. Segundo Lauro Calazans, piloto, presidente do Aeroclube de Ilhéus e diretor do Aeroclube de Itabuna, o principal problema não está nos aeródromos, mas no respeito às regras e restrições de cada um.

“Aviação não combina com crise. Quando uma peça fica muito mais cara, com dólar a quase R$ 6, alguns proprietários vão optar por usar mais tempo em vez de trocar. Em pista particular, por exemplo, em crise pode-se chegar ao mínimo de segurança. E como será a pista em mau tempo, em solo molhado? Os acidentes ocorrem, às vezes, porque não houve estudo em pista molhada, porque pousou um avião que era maior do que os autorizados. Estudos custam caro, mas ajudam a aumentar os níveis de segurança”, explicou.

Em aeroportos e aeródromos públicos civis, como o Internacional de Salvador e o de Ilhéus, por exemplo, os estudos mencionados por Lauro são conduzidos pelo Cindacta (Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo), sistema subordinado ao Comando da Aeronáutica do Ministério da Defesa. Mas, em pistas particulares, o proprietário que é o responsável.

Segundo o piloto Jorge Silva*, não é raro que donos de aviões pressionem para a flexibilização de regras e do cumprimento do plano de voo, que dá conta das orientações gerais do trajeto da viagem. Ele cita pedidos para voar em condições climáticas adversas ou com excesso de peso – o que aconteceu com o acidente em Barra Grande, em 2019, que matou cinco pessoas.

“Às vezes os donos de aviões querem que você voe sob qualquer condição, qualquer tempo, com qualquer carga, e não é assim que se trabalha. Às vezes acham que o piloto está de má vontade quando ele apresenta impedimentos técnicos por motivos de segurança. Mas tem dono de máquina que acha que, porque contratou o piloto, ele tem que ser o Top Gun e voar de qualquer jeito”.

Dos acidentes em 2021, quatro foram causados por perda de controle da aeronave no solo, dois por falha de motor em voo e um por perda de controle em voo. Além disso, em cinco, também houve excursão de pista, que é quando a aeronave sai da superfície da pista durante pouso ou decolagem.

Diferentemente de aeroportos, que possuem estrutura de torre de controle e mais mecanismos de sinalização, comunicação e segurança, aeródromos normalmente operam apenas em condições visuais ideais: quando o piloto enxerga perfeitamente a pista. Por isso, a maioria dos pousos precisa ser com tempo bom, sem ventos fortes ou chuvas, e durante o dia.

Segundo a Anac, aeródromos públicos precisam de homologação para operar, enquanto os privados precisam de registro aprovado. Para isso, o proprietário da pista precisa apresentar um estudo atestando a viabilidade da construção com o espaço aéreo disponível. Ainda assim, existem fiscalizações anuais e as que podem acontecer por meio de denúncia.

“Em face da prioritária preocupação com os aspectos de segurança da aviação civil, a Agência trabalha com conceitos preventivos de mitigação de riscos, obtida por meio de ações de vigilância continuada e de monitoramento das operações. As fiscalizações ocorrem, portanto, de forma programada, não programada e a partir de denúncias”, informou a agência. Para Márcio Teixeira, que foi piloto profissional por mais de 30 anos, mesmo com as regulamentações da Anac, a aviação geral é, sim, mais arriscada do que a comercial.

“A aviação comercial, de linha aérea, é muito mais segura que a aviação geral, de táxi aéreo, executivo. Na aviação comercial, o piloto só voa naquele avião, o treinamento é rigorosíssimo, assim como a fiscalização. Normalmente, todos os aeroportos operam com ILS (sigla em inglês para Sistema de Pouso por Instrumento, dispositivo que fornece informações sobre o eixo da pista e trajetória ideal de planeio). Isso diminui muito a periculosidade. No táxi aéreo, não. O piloto é responsável até pelo abastecimento da aeronave”, desabafou.

Ele aponta que fatores como a variação de temperatura e obstáculos na pista aumentam a dificuldade. “Quando eu viajava para Ibotirama, eu pousava às 6h, em torno de 20º C. Se você for fazer esse mesmo pouso meio dia, vai encarar 34º C. A temperatura quente faz o ar ficar mais rarefeito e o avião consome muito mais combustível”, acrescentou.

“Árvores na zona de proteção de aeródromos limitam muito a visão do piloto. Em Vera Cruz, onde eu comecei, tinha muitas árvores nas cabeceiras da pista, que limitam a distância da decolagem e pouso, além do peso que a aeronave pode aguentar. Tudo que envolve a rampa de aproximação na pista interfere na segurança do pouso. Algumas pistas são feitas de forma errada, com vento atravessado, numa direção desfavorável. Isso também tem impacto”, completou Jorge.

Fios de torres de transmissão e de energia, que contribuíram para o acidente que vitimou a cantora Marília Mendonça e outras quatro pessoas, em Minas Gerais, também aparecem como vilões: os fios dificilmente são identificados durante a aproximação para pouso. Ainda em novembro, foi sancionada pelo senado lei com o nome da artista que obriga empresas de energia a implantarem alertas nas torres. Na Bahia, a Neoenergia Coelba não descarta adequações.

“Todas as estruturas na área de concessão da distribuidora, inclusive nas proximidades de aeródromos, estão devidamente sinalizadas conforme a legislação vigente. Com relação à Lei Marília Mendonça, a empresa aguarda a sanção das novas regras e determinações dos órgãos competentes para avaliar eventuais adaptações, caso necessário”, respondeu em nota.

Região do Agro 
Cinco dos 7 casos foram em atividades agrícolas, que englobam desde voos de pulverização de água, sementes e inseticidas em plantações até transporte de carga e pessoal.

“Normalmente, envolve tempo e segurança. Por exemplo, fazer pagamentos, transporte de vacinas, insumos agrícolas, peças de equipamentos caros, como trator. Conheci também um pessoal que transportava sêmen de boi, no nitrogênio, para não perder o material. Quem tem fazendas muito grandes e muito afastadas de centros, prefere ter uma pista e aviões que suportem esse tipo de pouso e decolagem”, explicou Lauro.

 Assim como a Bahia, outros cinco estados contrariaram a tendência nacional de queda no número de acidentes: Mato Grosso, com 20; Minas Gerais, com 15; Pará, com 12; Goiás, com 8; e Roraima, com 6. *O nome foi trocado para preservar a identidade da fonte que não quis se identificar

Avião carregado de vacinas atingiu jegue
Mas não é apenas em aeródromos pequenos no oeste do estado que ocorrem situações desafiadoras. Em março, um avião carregado de vacinas atingiu um jegue, em Ibotirama. O animal não sobreviveu, mas a aeronave e a carga não tiveram danos. Esse é um exemplo  do que é chamado de “incidente”.

Houve, também, “incidentes graves”, como se chama quando há danos à aeronave. Dois exemplos envolveram um táxi aéreo que pousou fora da pista em Salvador e outro que fez um “pouso longo” em Maraú. As situações estão em investigação.

Considerando esses dois tipos de incidentes, em 2021 houve 15 registros em pistas públicas e privadas em mais municípios baianos: Salvador (8), Porto Seguro (2), Ilhéus (2), Lençóis (1), Macaúbas (1), Maraú (1) e Ibotirama (1). Somando acidentes, incidentes e incidentes graves, foram 22 ocorrências no ano, maior número desde 2012.

O acesso aos dados do Sipaer foram possíveis via Lei de Acesso à Informação (LAI), a pedido do site especializado em dados públicos, Fiquem Sabendo.

Ocorrências históricas
Tragédia em Barra Grande 

Em novembro de 2019, um avião com 8 passageiros e dois pilotos pousou antes da pista de um resort, deslocando a aeronave e causando incêndio. Cinco pessoas morreram e cinco sofreram lesões graves. A investigação do Cenipa apontou falha do piloto, a Polícia Civil ainda apura o caso

Acrobacias na Barra 
Aeronave caiu no mar na praia da Barra durante acrobacias da Esquadrilha Textor Air Show, em outubro de 2015. O piloto, André Textor, morreu. Relatório do Cenipa apontou cansaço do piloto, que traba-lhava há 15 dias seguidos com aviação agrícola. O avião não tinha restrição para voar

Escândalo político 
A queda de um helicóptero em Trancoso em junho de 2011, que matou 7 pessoas, expôs ligação do então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, com empresários como Eike Batista e Fernando Cavendish, dono da construtora Delta

Chuva de dinheiro 
Em março de 2007, um avião bimotor carregado com R$ 5,56 milhões caiu na Fazenda Nossa Senhora de Lourdes, matando quatro pessoas. Segundo a Polícia Civil, cerca de R$ 500 mil do montante foram recuperados. Correio da Bahia