Exatamente um ano após a prisão preventiva de João de Deus, 77 anos, sob a acusação de praticar mais de uma centena de crimes sexuais, uma das vítimas do médium, a pastora baiana Simone Soares, 41 anos, falou sobre as violências que sofreu ao longo da vida. No relato, publicado no portal Universa, do Uol, a baiana, que hoje mora em Porto Seguro (BA), no extremo sul da Bahia, revelou que aos 13 anos foi abusada pelo médium.

Mas a violência a ronda desde que nasceu: quando Simone tinha seis meses de vida quando o pai matou sua mãe. Já adulta, ela também foi vítima de violência doméstica como sua mãe: casou-se com um pastor evangélico e foi agredida por ele. Decidiu não denunciá-lo homem porque ele é pai de dois de seus cinco filhos. Mas saiu de casa e hoje reconstrói a vida ao lado de um namorado da adolescência que reencontrou após duas décadas. Morando em Porto Seguro (BA), a hoje pastora do Ministério Tabernáculo do Avivamento, recolhe doações para construir um abrigo para mulheres vítimas de violência.

“Meu pai era policial e matou minha mãe num Natal, quando ela tinha 23 anos. Aconteceu na casa onde morávamos, em Vitória da Conquista (BA). Anos depois, ele me disse que sentia muito ciúme dela e que, mesmo antes do casamento, tinha vontade de matá-la. Ele era alcoólatra e a família da minha mãe já tinha alertado para que ela o deixasse. No dia do crime, ele saiu para beber e mandou uma das minhas irmãs, na época com quatro anos, falar para minha mãe que iria matá-la. Com medo e pressentindo que algo de ruim fosse acontecer, minha mãe pediu que seu irmão —meu tio— a acompanhasse no trajeto entre a casa da minha avó e a nossa casa. Minutos após ele deixá-la no portão, ouviu três tiros: meu pai a trancou no quarto, colocou o guarda-roupa atravessado na porta e atirou. Não pegou em mim porque ela me jogou no berço. Minhas duas irmãs estavam na cozinha brincando (…). Foi e é muito doloroso lembrar de tudo”, revelou, em seu relato. De acordo com a baiana, o pai foi preso, mas conseguiu responder o processo em liberdade.

Quando Simone completou 13 anos, o marido de uma tia teve um problema na visão e eles foram todos morar em Anápolis (GO), em busca de uma cura espiritual com o João de Deus. Eles frequentavam a Casa de Dom Inácio de Loyola [em Abadiânia, onde o médium fazia os atendimentos] toda quarta, quinta e sexta, para o tratamento do parente. Tratamento, aliás, que não funcionou, porque hoje o tio da pastora é cego.

“Quando chegamos lá, João falou para minha tia que eu e minhas irmãs éramos médiuns e passei a realizar atividades na casa, como segurar materiais usados na enfermaria. Uma vez, o João me mandou entrar na sala com um senhor que tinha deficiência visual. Esse idoso ficou deitado no sofá, e João me mandou ficar em silêncio. Ele abriu a calça, tirou minha blusa e tocou em mim. Não houve estupro, mas ele fez o que quis. Me senti muito mal, mas tinha medo de denunciar uma entidade, como ele era considerado”, desabafou.

Quando acabou, Simone conta que João de Deus abriu a porta da sala e falou para tia dela que a pastora precisava desenvolver a mediunidade e que, para isso, tinha que voltar mais vezes: “Depois daquele dia, virei outra pessoa. Mas tive medo de contar e ser punida. Os abusos duraram um ano”. Depois de um ano, Simone estava deprimida e não saía da cama e acabou voltando para Abadiânia. Aos 17, reencontrou João para conversar com ele e tentar impedir que ele abusasse de outras vítimas.

“Mas ele veio para cima de mim, e o empurrei. Minutos depois, veio um segurança dele, apontou uma arma para mim e me mandou sair de lá”. Após esse episódio, a baiana procurou uma igreja evangélica e se converteu. “Aos 21, parei de ter medo e comecei a falar com mulheres sobre os abusos. Também procurei a delegacia para denunciar tudo o que sofri com João de Deus, mas a delegada disse que o crime havia prescrito. Mandou deixar pra lá, não mexer com ele”, disse ainda, no relato. Simone disse ainda que suas irmãs, hoje com 45 e 43, também foram abusadas por João de Deus, “mas preferem não tocar no assunto”.

A baiana revelou ainda que começou a escrever o livro O Que Deus Fez Por Mim, publicado ano passado, há dez anos. Nele, ela conto toda a sua história e violências que passou: “Procurei até político para me ajudar a publicá-lo, mas falaram a mesma coisa. Não queriam que eu o denunciasse. Mas ano passado consegui publicá-lo. Quando contei para a minha família toda a verdade, disseram que eu queria aparecer. Então, não tive apoio para seguir com a denúncia. Fico feliz que outras mulheres tenham falado sobre o assunto no ano passado, quando algumas vítimas foram à TV. Depois disso, voltei à delegacia e contei tudo”. Correio da Bahia