Foto: Jornal Grande Bahia

O que leva uma pessoa a perder a cabeça e até a matar? O Fantástico fez um levantamento nacional de brigas que terminaram em assassinatos em 2019. São histórias que mostram as consequências trágicas do descontrole ao volante. O que está sendo feito para conscientizar os motoristas? Pode acontecer em qualquer estrada, avenida ou rua do Brasil. Um dos vídeos obtidos pelo Fantástico mostra um engarrafamento em Florianópolis e, de repente, começa uma pancadaria.

Em outro, numa estrada perto de Curitiba, um casal está viajando de moto. Após uma discussão, os dois são perseguidos por um carro. O vídeo começa com o motoqueiro fazendo um gesto obsceno para o motorista. Segundo o motoqueiro, isso foi uma reação a uma fechada que não aparece no vídeo. Depois do confronto, ele pega uma rodovia. Minutos depois, é surpreendido pelo motorista do carro, que dá uma fechada, mas o motoqueiro desvia e segue em frente. A perseguição não para. O motorista ultrapassa e corta o caminhão, correndo em ziguezague. Mais adiante, outra fechada.

Para tentar fugir, o motoqueiro pega a contramão e volta pelo acostamento. Até que decide sair da estrada. Mas, de repente, também na contramão, aparece o carro. O motoqueiro foge, mas a perseguição ainda não acabou. Ele faz uma manobra para sair da estrada e o perseguidor continua colado nele. O carro então para e o motoqueiro entra em uma estrada secundária.

O motorista saltou do carro para tentar pegar o motoqueiro, que segue em frente. Ele passa por várias ruas de uma cidade pequena e finalmente para pedir ajuda e ligar para polícia. “Tem um cara louco atrás da gente, a gente pode esconder a moto aqui?”, pergunta o motoqueiro após toda a perseguição.

O motorista, Fernando Pereira Fernandes, foi indiciado por tentativa de homicídio. Nem ele nem o motoqueiro quiseram dar entrevista. A perseguição aconteceu em março de 2019 e durou cerca de 20 minutos, ao longo de 10 quilômetros. E não causou acidentes.

Em 2019, pelo menos 39 pessoas morreram assassinadas: 23 por arma de fogo a partir de uma situação de trânsito. Vítimas não só de tiros, como também brigas, facadas e até atropelamento proposital. Foi o que aconteceu com o aposentado José Antônio Farias, de 66 anos, em outubro de 2019.

Sorriso, Mato Grosso do Sul. José atravessava uma rua, quando por pouco não é atropelado por uma moto. O motoqueiro vai embora. José se revolta. Quinze segundos depois, o aposentado é atropelado pelo mesmo motoqueiro. Mancando, o motoqueiro vai até José, mexe nele, mas depois acabou fugindo. A família recebeu a notícia primeiro pelas redes sociais, mas a informação veio incompleta. “Fiquei sabendo que foi um acidente, foi atropelado por uma moto, uma moto atropelou ele”, conta o filho da vítima.

Mas o filho Fernando foi ao local do atropelamento procurar câmeras que pudessem esclarecer a história.

“Foi quando eu busquei a imagem da câmera da rua. Eu liguei para o meu irmão falando ‘ó cara, isso aqui não foi um acidente, olha só o que aconteceu com nosso pai”, explica Fernando.

José morreu no hospital, vítima de traumatismo craniano. Ele era o avô que inventava musiquinhas para a neta Ana Carolina. Ela é autista.

“Até hoje ela quer que eu cante as músicas, mas eu não sei, porque ele inventava, daí ela fica braba, ela já começa a me agredir, que ela quer que eu cante a musiquinha que ele cantava para ela”, conta a mãe emocionada.

O motoqueiro, William Pigozzo, está foragido. O advogado dele diz que William está sendo ameaçado pelas redes sociais. E que por isso pediu para o cliente dele ser julgado em outra comarca. Quando isso acontecer, diz o advogado, William vai se apresentar.

“Tu imagina: teu pai, ao qual você achava que ia perder ele para um câncer, porque ele fumava. Tu vê uma cena daquela. O que me revolta, a situação, a maneira como foi. Por quê? Pra quê? É o mundo de hoje que estamos vivendo”, relata o filho Márcio.

“Foi um homicídio com dolo eventual por motivo fútil, não teria necessidade alguma de chegar a esse ponto. Como autoridade policial, vejo que as pessoas estão intolerantes”, explica o delegado do caso.

João Pessoa, Paraíba, fevereiro de 2019. O carro branco que tem identificação na porta é um táxi que tenta estacionar no ponto. Mas outro carro não deixa, avança, e o taxista fica sem espaço. Aí um homem salta do banco do carona para confrontar o taxista. Tira uma arma da cintura e dá três tiros. O assassino vai embora andando, porque mora ali perto. O taxista Paulo Damião dos Santos morreu no hospital. Deixou mulher e dois filhos.

“Era uma pessoa muito calma, não gostava de briga, não gostava de bebida, essas coisas, então foi um choque muito grande a gente saber que foi desse jeito”, conta a viúva Francisca Santos Alves.

“Entre a saída do carro, a morte e a saída do assassino, foram 9 segundos”, explica o advogado da família, Getúlio de Souza.

O assassino Gustavo Teixeira correia está preso. A defesa dele diz que “não existem fundamentações jurídicas para mantença da prisão” e que “Gustavo está com seu direito de defesa cerceado por falta de acesso aos autos”.

“Ele não quis que o seu amigo afastasse o carro e matou por esse motivo. Se a Justiça põe uma pessoa dessa em liberdade, de uma certa forma fomenta outras pessoas a fazerem isso”, declara o advogado.

Em Manaus, no Amazonas, o policial militar que atirou em Gabriel Rodrigues Rêgo está respondendo em liberdade.

“O que eu lembro no momento foi que o carro tipo fez menção que ia me bater. Aí foi na hora que a gente teve uma discussão. Ele xingou determinado tipo de coisa, falando da minha mãe. No calor da emoção, quebrei o retrovisor do carro dele. Mas em nenhum momento eu pensei que ia acontecer algo que ia mudar a minha vida”, relata Gabriel.

Um tiro.

“Primeiro eu senti um zumbido no ouvido. Aí automaticamente foi desligando os movimentos da minha perna. No momento que eu levei o tiro, eu liguei para o meu irmão. Passou um casal de amigos que me socorreram na hora. Eu disse para esse casal de amigos meus: fala para os meus pais que eu amo a minha mãe, que eu amo a minha esposa, meus irmãos, meus amigos, que eu acho que não vou mais sobreviver”, conta.

“O autor alega que se sentiu ameaçado, a partir do momento que a vítima teria mostrado para ele o cabo de uma pistola. É o que ele alega, embora essa informação não seja verídica”, afirma o delegado do caso.

O advogado do PM Thiago da Silva Carvalho diz que “acredita na inocência do cliente e isso ficará demonstrado ao final do processo”.

De acordo com um psicólogo especialista em trânsito, os danos às vítimas não só são físicos. “Entendemos muitas vezes que a lesão ocorre só do ponto de vista físico. Mas ela pode ocorrer também do ponto de vista psicológico”, explica o psicólogo Paulo José Santana.

Ele atende pessoas como uma mulher, que prefere não ser identificada. Com ela, a agressão foi verbal e aconteceu porque o carro dela apagou.

“Eu parei o trânsito, literalmente. E para minha surpresa, quem veio foi uma mulher. E ela foi agressiva verbalmente. Se eu abrisse a porta, eu ia dar na cara dela. A lição que eu tiro é isso, sabe? Eu acho que fui melhor que ela”, conta a motorista.

“Às vezes, uma buzina curta sua vai gerar um impacto tão grande, ela pode sim, sem exagero, pode vir a parar de conduzir”, explica o psicólogo.

Mas afinal: por que o trânsito é mais um gatilho da violência no Brasil?

“O trânsito, você não tem escolha. Para viver, você está em trânsito. Você tem um outro ‘porém’ nesse espaço, que é o que a gente fala, relata, o anonimato. A gente não se enxerga no trânsito. O outro não nos enxerga. Por isso se fala muito. É necessária a fiscalização para coibir os comportamentos. Geralmente você vê quando as pessoas chegam, estão fazendo alguma coisa diferente, um comportamento de risco no trânsito, e vê que tem um fiscal de trânsito, um agente de trânsito ali, ele muda, ele para. Alguém está olhando para ele. Na grande maioria, é no anonimato. Então eu não tenho pudores, digamos assim, nas minhas reações, no meu comportamento. Eu tenho a sensação que eu nunca mais vou te ver. Então, eu posso liberar talvez a minha pior face em alguns momentos para reagir devido a esse anonimato”, explica a Juliana de Barros Guimarães, psicóloga do Detran de Pernambuco.

“Ao se encapsular dentro dessa armadura que são os veículos, muitas pessoas se colocam em uma posição, ou em situação de se achar com mais direitos do que outras. Ou seja, eu desrespeito o outro para reafirmar um suposto direito que eu acho que eu tenho e que os outros não tem o tanto quanto eu tenho”, analisa o antropólogo Wellinton Caixeta Maciel.

Um desrespeito violento que afeta mais gente além da vítima.

“A família ficou completamente destruída. Em todos os sentidos: psicológico, emocional, financeiro”, desabafa a mãe de uma vítima.

Em outubro de 2019, Mári de Castro perdeu o filho, José Douglas, numa tragédia que ainda está sendo investigada. Ele estava numa moto: “Foi uma briga de trânsito, ele levou um tiro e morreu”, conta a mãe.

Por enquanto, ninguém foi preso. José Douglas trabalhava em duas fábricas de móveis que são da família. Um tio dele, Aldemir, também trabalhava nas fábricas. Aldemir tratava José Douglas como filho.

“O meu irmão já tinha problema de depressão. Mas, sim, fazia tratamento e era controlado. Mas, com a pressão psicológica dele não conseguir resolver o caso do meu filho, não conseguir que esse cara fosse preso, aí ele cada dia mais foi se desesperando, foi piorando, foi até que o chegou o ponto de cometer suicídio”, conta Mári de Castro.

Depois desse assassinato, o Detran de Pernambuco começou uma campanha preventiva nas ruas e estradas do estado.

“Fizemos uma parceria técnico-científica com a Abrapsit, Associação Brasileira de Psicologia de Tráfego, para que esses psicólogos pudessem atuar”, explica Juliana de Barros Guimarães, psicóloga do Detran de Pernambuco.

É uma blitz psicológica e cidadã. Os motoristas assistem a vídeos de conflitos, fazem perguntas, desabafam.

“Para justamente amenizar essas brigas por coisas pequenas, coisas que podiam passar, se tivesse em um momento que não tivesse tão acirrado no trânsito talvez uma batida, uma colisão, não gerasse até uma morte como chegou a gerar a esse condutor, a esse motociclista”, afirma Paulo Paz, gerente de Fiscalização e Planejamento do Detran-PE.

“Essas brigas no trânsito refletem que nossa sociedade está doente. Na última blitz que a gente fez, foi engraçado porque teve gente que viu na TV que tinha psicólogo na rua conversando e saíram de casa e foram lá para falar com a psicóloga”, conta Juliana de Barros Guimarães.

“Você sai de casa, um cidadão comum, e retorna como um criminoso. Então é muito importante trabalhar essa paciência, principalmente a paciência no trânsito”, analisa o Delegado de Polícia Nilson Farias.

O diálogo na blitz psicológica dá frutos: “A gente teve agora uma discussão muito boa aqui. A gente vai levar essa instrução aqui para o nosso dia a dia, né? Agora vamos pensar duas, três, quatro vezes antes de comprar uma briga no trânsito. Não vale a pena discutir no trânsito não”, conta motorista na blitz. G1