O processo que apura a responsabilidade de supostos mandantes nos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes completou 15 dias de audiência na sexta-feira (30). Foram cerca de 75 horas de depoimentos de 10 testemunhas. Todas arroladas pela Procuradoria Geral da República (PGR).
Nesta segunda (2), Élcio de Queiroz, motorista do Cobalt que participou do atentado contra a vereadora do PSOL em 14 de março de 2018, retorna para encerrar seu depoimento por videoconferência. A partir daí, terão início os depoimentos das testemunhas chamadas pelas defesas dos réus.
Em três semanas, até aqui, houve depoimentos que reforçaram a investigação, enquanto outros mantiveram dúvidas que não foram levadas em conta pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso no STF, na homologação das delações premiadas de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz e ao aceitar a denúncia da PGR.
São cinco os réus do processo no Supremo:
- Domingos Brazão – Conselheiro do TCE do RJ é apontado como mandante da morte de Marielle.
- Chiquinho Brazão – Deputado federal também responde como mandante junto com o irmão, Domingos.
- Rivaldo Barbosa – Delegado da Polícia Civil do RJ é acusado de saber do crime antes de sua realização, em 14 de março de 2018, quando ocupava a direção da Divisão de Homicídios.
- Ronald Paulo Pereira – Major da PM está preso por outro processo por envolvimento com a milícia de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio, onde teria praticado homicídios e ocultação de cadáver. No caso Marielle, o major Ronald é acusado de participar do homicídio ao monitorar os passos da vereadora.
- Robson Calixto Fonseca, o Peixe – Policial militar. É acusado de integrar a organização criminosa que seria chefiada, de acordo com a denúncia da PGR, pelos irmãos Brazão. Segundo a denúncia, Peixe teria ajudado a desaparecer com a MP5, submetralhadora usada para matar Marielle.
‘Marielle foi meu escudo’
Os depoimentos no STF tiveram início no dia 12 de agosto com o relato de Fernanda Chaves, assessora de Marielle e que estava no carro no momento do crime. Segundo ela, a vereadora serviu de escudo para que não fosse atingida pelos disparos.
“Não fui atingida porque Marielle foi meu escudo. Simplesmente, essa é uma leitura que eu faço. Eu estava muito próxima da Marielle, a gente estava olhando um celular da outra. A Marielle é uma mulher grande, alta, larga, grande. E no primeiro momento, eu me enrolei, me enrolei em um caracol e me afundei entre meu banco e o banco do Anderson”, relatou a assessora.
Fernanda foi a primeira a falar que havia uma rusga entre Marielle e Chiquinho Brazão e que a defesa da moradia sempre foi uma pauta da vereadora. O relato foi reforçado pelo delegado federal Guilhermo Catramby e pelos agentes federal Marcelo Pasqualetti e Felipe Alves que vieram nos dias seguintes. Cada um dos federais respondeu a perguntas por três dias cada.
Questionamentos ao processo
As defesas comemoraram, na tarde de sexta-feira (30), quando Élcio de Queiroz entrou em contradição com relatos feitos por Ronnie Lessa entre a terça (27) e a quinta (29).
Mesmo com o relato de Lessa de que compartimentava as informações que chegavam a Élcio, o depoimento do motorista do Cobalt prata, em que os assassinos confessos estavam na noite do crime, foi visto pelos defensores como mais um ponto para tentar derrubar duas delações premiadas homologadas pela Justiça.
Em cinco horas, Élcio contou que a submetralhadora MP5 era de Lessa o que contradizia o depoimento prestado pelo comparsa dias antes. Lessa diz que recebeu de Macalé e depois descartou com milicianos de Rio das Pedras, enquanto Élcio contou que pertencia ao amigo de três décadas.
Além disso, o relato de Lessa de que ele foi contratado para o crime, enquanto Élcio disse que ouviu ser “pessoal”, o que logo completou: “Faz sentido se houver uma afronta. Nunca ouvi o nome da senhora Marielle”, contou Élcio.
Ele também conta ainda que recebeu uma foto com várias mulheres, além de Marielle, enquanto Lessa diz que a imagem era apenas da vereadora. “Eu não participava dessa rede de crimes do Ronnie Lessa”, disse Élcio.
Corrupção policial
Os depoimentos levaram para o STF um tema distante da Corte: a corrupção na Polícia Civil do Rio. Mais especificamente, na Delegacia de Homicídios, na ocasião em que o delegado Rivaldo Barbosa comandava a unidade ou depois como Chefe de Polícia.
“Quando assumimos o caso Marielle chamou a atenção uma série de perguntas que não haviam sido respondidas passada meia década do crime. Você vai ver e havia uma taxa irrisória de elucidação de homicídios durante essa administração”, analisa o delegado federal Guilhermo Catramby.
“Havia um balcão de negócios na DH. A morte de Marielle é uma inércia desse balcão de negócios”, relata em seu primeiro dia de depoimento o agente Marcelo Pasqualetti.
Em seu relatório, a PF lista que crimes do chamado Escritório do Crime não foram solucionados pela DH sob Rivaldo Barbosa.
Ronnie Lessa não integrava o grupo de matadores, mas a ideia de trazer o tema ao tribunal, segundo apurou o g1, foi mostrar a suposta leniência dos gestores da polícia na época com assassinatos praticados entre milicianos, contraventores ou organizações criminosas.
As apurações sobre os assassinatos do ex-policial Geraldo Pereira e do policial André Serralho, ocorridos em maio e agosto de 2016, por exemplo, citadas pelo secretário de Ordem Pública da Prefeitura do Rio, o delegado Brenno Carnevale, por exemplo, desapareceram.
“Recebi os dois inquéritos (Pereira e Serralho) com sete folhas cada um. Fiz despachos saneadores, pedindo diligências e aí, os inquéritos somem. Perguntava no cartório e diziam que estava com o pessoal da investigação. Perguntava ao pessoal da investigação e diziam que estava no cartório. Ficava um desencontro de informações e nunca mais vi os documentos”, explicou Carnevale.
Testemunhas mortas
Parte dos personagens citados na audiência por algumas testemunhas morreram ao longo dos anos. O principal deles é Edmílson Oliveira da Silva, o Macalé. É a ele que Ronnie Lessa atribui em sua delação ter trazido o “serviço” de matar Marielle Franco.
Macalé foi assassinado em 2021. Até hoje, a sua morte não foi solucionada. Para tentar corroborar esse relato de Lessa, a Polícia Federal demonstrou vínculos de Macalé com os irmãos Brazão. Eles foram citados como braços políticos na região de Oswaldo Cruz, na zona norte do Rio, onde Macalé atuava.
A PF também demonstrou que Macalé, Lessa e Chiquinho já se conhecem desde o ano 2000, na casa de Jorge Santhiago José Geraldo, ex-servidor da Alerj. Santhiago teve um infarto e morreu em 2008.
Outros citados, já mortos, são o capitão Adriano da Nóbrega e tenente João André, chefes do Escritório do Crime. Adriano e Lessa se desentenderam por Lessa se negar a pedido de João de lavar R$ 30 mil mensais em sua academia para o capitão. Por este motivo, Ronnie Lessa deixou a favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste.
“Dizer não a eles (Adriano e João) era o mesmo que xingar a mãe dele. Ali ficou um arranhão. E o problema com Adriano é a morte”, disse Lessa. O tenente João foi assassinado em março de 2016, enquanto o capitão Adriano foi morto em 2020, na Bahia.
Crime no Rio
O caso Marielle levou ainda para a Corte superior um outro assunto que faz parte do dia a dia carioca, mas parecia distante do poder em Brasília: a constituição das milícias, dos grupos de extermínio e da narcomilícia.
O tema veio à tona com o depoimento de Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica. O miliciano da Zona Oeste do Rio, preso na Penitenciária Federal de Campo Grande, contou como foi o início do Escritório do Crime:
“O Pereira tinha relação com o jogo do bicho e ele me contava que o Escritório do Crime era um grupo de extermínio que surgiu com o apoio dos bicheiros. Até a década de 1990, cada bicheiro tinha o seu matador, mas isso facilitava na descoberta do mandante dos crimes. Então, os bicheiros terceirizaram os homicídios. Ao mesmo tempo, a Delegacia de Homicídios não investigava os crimes”, contou Orlando.
A partir daí, teve início uma citação infindável de bicheiros como Rogério Andrade, Bernardo Bello (foragido) e Celso Curi (citado na investigação contra o ex-prefeito Marcelo Crivella), a comunidade de Rio das Pedras, berço da milícia no Rio, além do desmanche do Cobalt prata, no alto do Morro da Pedreira, outra comunidade na zona norte da cidade.
“O que conheço do Rio é como turista. Agora estou conhecendo o Rio de outra forma. Quem é hoje a pessoa do miliciano?”, questionou a Ronnie Lessa o desembargador Airton Vieira, auxiliar do ministro Alexandre de Moraes e que conduz as audiências no STF.
“Não é, necessariamente, o policial. Pode ser um civil. Tem um tal de Lica (Helio Balbino Filho), que era lavador de carro, miliciano e se associou ao Comando Vermelho. Pelo que eu ouvi dizer explora gás, kombi e ainda está vendendo cocaína e maconha. Narcomilícia. Por isso que tem gente que diz por aí: “sou polícia, mas não sou milícia”, respondeu Lessa. G1