Fuzis, pistolas com mira laser e até granadas. Armas potentes, aliadas a um treinamento específico para manuseá-las, fizeram crescer na Bahia o poder da facção criminosa Comando da Paz (CP). Os equipamentos que vêm tornando ainda mais violentas as disputas com o arquirrival Bonde do Maluco (BDM) chegam de fora. Faz pouco tempo que o CP firmou uma aliança com outra facção, o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro. Desde então, é a segunda maior organização criminosa do Brasil que abastece os baianos do CP.

A chegada das armas de fora já reflete nas apreensões no Estado. Embora não atribua os números diretamente ao fornecimento do Comando Vermelho, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP) registrou um aumento de 113% nas apreensões de fuzis no estado no ano passado com relação a 2019. Foram 49 armas do tipo retiradas das ruas em 2020, enquanto, em 2019, ações policiais localizaram 23 fuzis.

Parte das armas que chegam à Bahia cruzam as rodovias do estado, através do tráfico internacional. Para o chefe do Comando de Operações Especiais da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na Bahia, o inspetor Jader Ribeiro, não resta dúvida de que são grupos rivais como o CV e o PCC – aliado, na Bahia, do Bonde do Maluco – que fazem com que o arsenal chegue aqui.

“São armas muito caras. Pistola que custa R$ 10 mil e fuzil R$ 40 mil, mas em grande quantidade, tipo 30 pistolas, 20 fuzis. Uma pequena quadrilha não tem como arcar com esse custo todo, e sim uma rede que sustenta esse mercado. Sem sombra de dúvidas que as armas que chegam à Bahia vêm do tráfico internacional, através das grandes organizações criminosas do país, o CV e PCC, para alimentar a guerras entre as facções baianas”, aponta.

A SSP disse não ser atribuição da polícia baiana investigar o tráfico internacional, mas disse que atua com repressão e inteligência contra organizações criminosas e fornece apoio às forças federais, quando solicitada. A Polícia Federal disse que não se manifestaria.

O PCC já é apontado como aliado do BDM na Bahia. Mas, não faz muito tempo que o Comando Vermelho chegou ao estado. Em setembro do ano passado, CORREIO abordou com exclusividade a chegada da organização carioca aqui. Siglas do CV foram pichadas no território do CP, em alguns casos, postas ao lado das iniciais da facção baiana, evidenciando a relação entre as duas organizações criminosas.

O CV determinou luto na Bahia pela morte de um dos seus fundadores, o traficante Elias Maluco, em setembro do ano passado. Em outubro, o governador Rui Costa disse que não vai permitir que nehuma facção controle Salvador.

Disputa de fornecedores

O medo de ficar no meio do fogo cruzado e acabar pagando com a vida não é incomum entre aqueles que vivem em locais tomados pelo tráfico. Para especialistas em segurança pública, no entanto, há uma novidade neste cenário: o aumento da violência de uma disputa, agora, entre fornecedores. É o que explica o sociólogo Luiz Claudio Lourenço, coordenador do Laboratório de Estudos Sobre Crime e Sociedade (Lassos) da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

“De fato, é algo novo no cenário da atuação dos grupos, porque, anteriormente, você tinha o PCC fazendo esse papel e os vários grupos disputando o comércio varejista entre si. Por trás dessa rivalidade entre o Comando da Paz e o BDM, a gente está observando uma disputa também para o fornecimento. Não mais uma disputa apenas do varejo de drogas, mas o fornecimento entre o PCC de um lado e o Comando Vermelho de um outro”, comenta.

O inspetor Jader Ribeiro, da PRF, aponta a existência de uma corrida armamentista. “No ano passado, apreendemos duas pistolas da Croácia na BR-324. Foram trazidas do Paraguai, onde o PCC e o CV têm bases, com destino a Salvador. Não sabemos para qual grupo criminoso as armas iriam, mas obviamente isso estimula uma corrida armamentista, porque o grupo rival também vai querer também se fortalecer”, afirma.

Para Lourenço, esse tipo de disputa tende a gerar confrontos mais pesados: “Anteriormente, você tinha o PCC cumprindo hegemonicamente o fornecimento de armas e drogas. Então seria, supostamente, mais fácil estabelecer um tipo de acordo entre os grupos. Mas, a gente não via isso. Havia uma fragmentação desses grupos”.

O armamento pesado nas mãos de mais uma facção pode fazer com que a Bahia viva um cenário parecido com o que aconteceu no Ceará, afirma o pesquisador, com uma disputa entre PCC e CV, as maiores facções do país, por trás de um embate local. “De qualquer maneira, quando se incrementa o arsenal de armas pesadas, a possibilidade de ser ter conflitos maiores e com mais letalidade é uma hipótese provável”, acrescenta o sociólogo.

Periperi

Com arsenal e treinamento vindo de fornecedores maiores, as disputas entre os grupos criminosos na Bahia ganharam contornos ainda mais violentos. Em bairros onde os pontos de tráfico estão sendo disputados entre CP e BDM, o poder das facções já é evidente e os confrontos, mais agressivos. É o caso de Periperi, no Subúrbio Ferroviário de Salvador.

Até o início de abril, moradores de Periperi gozavam de uma certa tranquilidade. Não havia confrontos extensos, de proporções maiores, ao ponto de parar um dos bairros mais movimentados cortados pela Suburbana. No entanto, no dia 11 do referido mês, o BDM tentou tomar o território o controlado pela CP e a a comunidade da Baixada São Jorge, entre Colinas e Mirantes de Periperi, viveu momentos de terror.

Segundo moradores, era a inscrição do CP – “Tudo 2” – que aparecia nos muros e postes de quase toda a Suburbana nos últimos 20 anos. Aos poucos, as demarcações foram riscadas ou sobrepostas pelo ‘Tudo 3’, do rival BDM, à medida que as lideranças antigas foram assassinadas. Apesar de hoje o BDM ser a maioria no Subúrbio, o CP está reagindo. “Os caras (CP) estão com bala na agulha e estão caindo pra cima do BDM”, diz um morador que vive há 30 anos em Periperi.

Ele relata que o domínio das facções estaria fracionado na região: a ladeira e o entorno do Cemitério Municipal de Periperi, a localidade de Ilha do Rato e a Rua da Prefeitura são controladas pelo CP. Já o BDM está presente em Praia Grande, Rua das Pedrinhas, na localidade de Bariri e em grande parte de Mirantes de Periperi.

Ainda de acordo com quem mora em Periperi, os integrantes do CP são os mesmos que obrigam os comerciantes do Lobato a pagar até R$ 100 por semana de pedágio, conforme denúncia exclusiva feita pelo CORREIO em setembro passado. Os mototaxistas que trabalham na Avenida Suburbana no trecho do Lobato têm que pagar uma taxa à facção. “Todo o dinheiro recolhido é usado para o CV trazer armas para o CP”, disse um dos moradores.

São Caetano

Moradores do bairro de São Caetano também já observam mais confrontos. O tráfico no bairro é controlado pelo BDM, e no dia 12 de fevereiro, traficantes do CP foram até a Rua Direta da Gomeia para vingar as mortes de dois integrantes do grupo ocorridas dias antes. Os moradores, mais uma vez, ficaram no meio da disputa.

Os criminosos chegaram atirando a esmo, mas, como não encontraram os rivais, deixaram um rastro do terror, disparando contra as casas. Eles ainda atearam fogo em um carro e uma moto, que pertenciam a uma família. O CORREIO esteve no local, mas os proprietários não quiseram falar sobre o assunto.

Os vizinhos, porém, relataram que não estão tendo paz. “Do início do ano para cá, a gente via eles passando de pistola, revólver. Vez e outra uma carabina. Agora, todos estão de fuzis. Jogam granadas como se estivessem soltando traque no São João. Isso aqui virou um inferno”, desabafa uma dona de casa.

Tática

Um soldado da Polícia Militar que não quis se identificar, decidiu deixar a casa onde morava com a família e mudar de bairro, depois de ver como os conflitos estão acontecendo. “Com a chegada do Comando Vermelho, o CP passou a ter força para brigar com o BDM, para manter o que ainda tem e recuperar o que foi tomado. Eu morava no bairro onde os tiroteios entre eles passaram a ser frequentes. Às vezes eram duas, três vezes num dia usando granadas”, conta.

“Certa vez, eu tinha acabado de chegar do trabalho, quando um bonde, com uns dez a 15 rapazes, alguns carregando um fuzil em cada mão, passou na porta de minha casa. Tenho mulher e filha e não ia esperar uma covardia para cima de mim”, desabafa.

Ele observou, inclusive, uma mudança tática. “Antes, eles mexiam no armamento de qualquer jeito e isso gerava traficantes baleados e até mortos por comparsas acidentalmente. Hoje, se percebe nos vídeos, os traficantes não andam mais com os dedos no gatilho e isso demonstra noção técnica que fazem questão de exibir”, afirma.

“Isso deixa bem claro que o Estado vem perdendo o controle da situação, pois, à medida que essas facções são abastecidas de armas potentes e táticas, se tornam mais fortes que o próprio Estado, neste caso, a polícia”, pontua o policial.

Ele cita como exemplo o Complexo do Nordeste de Amaralina, onde em dezembro do ano passado, a SSP fez uma operação para retirar os quebra-molas colocado pelos traficantes da CP. “Tive colegas que foram emboscados ainda dentro das viaturas no Nordeste. Por sorte, nenhum deles morreu”, contou.

Relações entre faccções têm modelo empresarial

O coronel Jorge Melo, professor e coordenador do curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia, afirma que as relações entre Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, e o Comando da Paz, na Bahia, e entre o Primeiro Comando da Capital, de São Paulo, e os baianos do Bonde do Maluco, seguem os modelos empresariais.

“Têm moldes realmente empresariais. E, como se fosse uma empresa, o Comando Vermelho está agora ampliando sua organização criminosa e já se estabeleceu na Bahia. Sua chegada aqui se deu através de uma aliança com o Comando da Paz, que passa a funcionar como uma subsidiária do CV. É como se fosse um processo empresarial de fusão, aquisição muito comum no meio empresarial, sendo que aqui estamos falando de organizações criminosas”, explica.

Para ele, a aliança funciona, para o Comando da Paz, como uma sobrevida, uma chance de tentar quebrar o grupo rival do Bonde do Maluco. “Do ponto de vista do Comando da Paz, essa aliança é positiva porque vai lhe dar um fôlego, uma sobrevida para se manter no mercado e fazer frente à tentativa de hegemonia do Bonde do Maluco”, completou o especialista.

O coronel comentou ainda que as organizações criminosas vêm se aproveitando da pandemia para agir, possivelmente pelo fato de que algumas lideranças foram postas em liberdade durante a pandemia.

“Não adianta o negacionismo da área da segurança pública, porque isso é uma realidade não só da Bahia, do Brasil. Nessa pandemia, essas operações têm crescido, talvez em função do retorno de algumas lideranças postas em liberdade por causa da covid e essas ‘empresas’ estão aproveitando a situação para se consolidar em suas posições no mercado”, declarou.

Arsenal foi apreendido com trio em Itabela

Um verdadeiro arsenal de guerra foi apreendido por equipes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e da Polícia Militar da Bahia (PMBA) no dia 4 deste mês, em Itabela, no Extremo-Sul baiano. Os policiais realizavam fiscalização de combate à criminalidade no km 749 da BR 101, quando pararam um Honda/Civic com três ocupantes.

Durante a abordagem, os policiais perceberam um nervosismo incomum por parte do trio, como também respostas desencontradas em relação ao destino e motivo da viagem, o que levou as equipes a aprofundarem a fiscalização e descobriram o arsenal.

Ao todo foram apreendidos um fuzil 5.56; uma submetralhadora 9 mm; duas pistolas 9mm; um revólver 38; uma pistola 380; uma espingarda .12; cinco coletes balístico; 298 munições de 5.56; 50 munições de .38; 50 munições de 9mm; 16 munições de . 12; 27 munições de 380; dois volumes de emulsão explosiva; quatro espoletas; um cordel detonante. O trio foi preso e vaio responder por porte ilegal de arma e associação criminosa. Este ano, até 14 de abril, a PRF apreendeu 1.325 itens, entre armas de fogo e munições. As armas vêm, principalmente, do Paraguai. (Correio da Bahia)