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A crise provocada pelo novo coronavírus vai deixar uma herança negativa para os governadores. Com as finanças historicamente debilitadas, os estados interromperam o ajuste fiscal e passaram a lidar com uma dupla pressão, de aumento de gastos e queda de receitas. A piora das contas públicas já ameaça o salário dos servidores.

As finanças estaduais foram abaladas, sobretudo, pela queda de arrecadação com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o tributo mais importante para o caixa dos governadores e bastante ligado ao ritmo da economia.

“Em 2019, a situação dos estados já não era muito boa. Com essa pandemia e, principalmente, o impacto dela sobre a receita dos estados, a situação ficou bastante delicada”, diz o diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), Josué Pellegrini.

Em abril, a arrecadação dos estados somou R$ 41,7 bilhões, montante 15% menor do que o apurado no mesmo mês do ano passado, segundo dados do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), compilados pela IFI.

A queda na arrecadação em abril pode ser considerada apenas o primeiro sinal da crise que assola o caixa dos estados. Isso porque o número reflete o desempenho da atividade em março, quando o isolamento social – necessário para conter o avanço da doença – não vigorou o mês inteiro.

Dessa forma, o dado consolidado da arrecadação de maio dos estados deve ser ainda pior, já que vai mensurar o impacto de toda a paradeira da economia de abril, quando o distanciamento social vigorou de forma mais intensa.

Ao mesmo tempo, do lado da despesa, houve a necessidade de ampliar os gastos para conter os efeitos da pandemia e dar conta de manter os serviços públicos em funcionamento, em especial os da área de saúde, num momento de alta procura pela população.

“Os estados não têm como arcar com as suas despesas, que tendem a ser maiores em função da pandemia, sem ter a arrecadação do ICMS. Por isso a necessidade de um auxílio da União, uma vez que os governos estaduais não têm a capacidade de emitir dívidas”, afirma o analista de contas públicas da consultoria Tendências, Fabio Klein. Desde 1997, os estados são proibidos de emitir títulos de dívida.

Ajuda bilionária

Para os governadores conseguirem mitigar os efeitos da queda de arrecadação, a ajuda do governo federal se tornou essencial. Ao todo, segundo a IFI, o socorro soma R$ 86,14 bilhões. O pacote de ajuda é composto, sobretudo, por R$ 37 bilhões em transferências, que serão feitas em quatro parcelas, e R$ 32,6 bilhões de alívio na suspensão da dívida com a União até o fim de 2020.

A medida provisória que permite o repasse dos R$ 37 bilhões foi publicada pelo governo na quinta-feira (4), e a primeira parcela deve ser paga na terça-feira (9). Para receber a transferência e ter a dívida suspensa, os estados precisam desistir de ações na Justiça contra a União.

A ajuda também proíbe que servidores estaduais tenham aumento salarial até 2021, o que, segundo o governo, deve resultar numa economia de R$ 52,4 bilhões no período. Um exercício elaborado pela IFI mostra que, se a arrecadação dos Estados recuar 30% ao longo dos próximos meses, a ajuda do governo federal vai ser suficiente para cobrir a perda de receita até setembro deste ano.

“É importante (a ajuda). Resolve uma crise de caixa enorme e evita um colapso dos serviços públicos na grande maioria ou em todos os estados durante o ano de 2020”, afirma o secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles. “Mas coloca um problema adicional de pressão nos gastos públicos para os anos seguintes com a retomada do pagamento da dívida”, diz.

Segundo dados do Ministério da Economia, apenas a renegociação da dívida do governo paulista com a União foi de R$ 12,3 bilhões. “São Paulo entrou nessa crise equilibrado e o que se conseguiu, depois de tudo, foi novamente reequilibrar (as contas) de 2020, ainda que com um certo aperto”, afirma Meirelles.

O socorro do governo também inclui ajuda aos municípios, que devem receber R$ 23 bilhões em transferências. Ao todo, portanto, elas somarão R$ 60 bilhões. “O valor é muito elevado e impacta fortemente as contas da União, que está no seu sétimo ano de déficit primário”, disse secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, em entrevista à GloboNews no dia 28 de maio.

Waldery classificou a transferência a Estados e municípios como “substancial” e destacou que vai existir um pós-coronavírus e que a União e os entes devem se preparar: “Por isso que nós colocamos uma condicionalidade, que foi o congelamento de salários (de servidores) por 18 meses.”

Quadro é heterogêneo

Os estados brasileiros entraram na crise de forma bastante heterogênea. Uns foram pegos pela pandemia com as finanças mais debilitadas, enquanto outros entraram de forma ajustada. Mas é certo que os impactos financeiros da crise não serão diluídos no curto prazo e devem afetar todos os governos.

O carregamento da dívida, por exemplo, é apenas um dos problemas que serão herdados pelos governadores. Com a expectativa de lenta retomada da economia, a arrecadação não deve voltar tão cedo ao patamar observado antes da pandemia.

Pelo lado da despesa, ela deve seguir crescente, já que haverá uma demanda maior por serviços públicos, não apenas do setor de saúde. Muitas famílias afetadas pela crise, por exemplo, devem trocar o ensino privado pelo público.

Com uma das piores situações financeiras do país, o Rio Grande do Sul atrasa o pagamento do salário dos servidores há quatro anos. O estado já aprovou uma série de medidas de ajuste das contas públicas, como as reformas da Previdência e administrativa, e chegou a reduzir o atraso nos pagamentos no início do ano.

“Uma boa parte dos funcionários estava recebendo em dia, e os outros com atraso de até 13 dias”, diz o secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul, Marco Aurelio Cardoso. “Essa crise de arrecadação súbita já causou um aumento no atraso do pagamento de salário.” Em dois meses, o Rio Grande do Sul perdeu R$ 1,2 bilhão em receita, o que representa um mês de salário dos servidores.

No Rio de Janeiro, os pagamentos não estão atrasados, mas a queda de receita chegou a ameaçar a folha de junho. Além da perda de receita provocada pela piora da atividade econômica, o estado perde recursos de royalties do petróleo, com a cotação mais baixa da commodity. Em relação ao orçamento inicial de 2020, o estado espera uma queda na arrecadação de R$ 14 bilhões.

“Na sexta-feira (29 de maio), quando eu assumi a secretaria, eu recebi a informação de que a gente não conseguiria pagar (os salários do mês de) junho”, diz o secretário de Fazenda do Rio de Janeiro, Guilherme Mercês. “Esse vai ser um esforço diário, até que a economia se recupere, a gente conseguir pagar os salários e honrar os servidores.”

Nos últimos anos, os estados do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro já tiveram um certo alívio de caixa por não pagar a dívida com a União. O governo gaúcho porque conseguiu uma liminar no Supremo Tribunal Federal (STF), e o fluminense por fazer parte do regime de recuperação fiscal aberto em 2017.

O governo do Rio se debruça agora em uma nova discussão para renegociar o regime de recuperação fiscal, que termina em setembro. “Esse momento é pertinente para rediscutir as bases do acordo e obviamente rediscuti-lo dentro desse novo ambiente de uma economia pós-covid”, afirma Mercês. “Passamos os primeiros três anos e a discussão natural é de mais 3 anos.” G1