O ano era 2009 e não havia, na mídia, vestígios do assassinato de Anderson do Carmo ou qualquer traço de crueldade na personalidade da deputada federal e pastora Flordelis (PSD) – mais tarde apontados em uma investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro. Embasado na boa índole da mãe com mais de 40 filhos adotivos, o diretor Anderson Correa produziu, junto com Marco Antônio Ferraz, um docudrama em que contou a história da moça que era pauta de atrações globais – ou pelo menos o que se sabia até ali.

Com uma moral até então ilibada, a religiosa e sua família foram protagonistas de “Flordelis: basta uma palavra para mudar”. O elenco, formado por talentos como Bruna Marquezine, Fernanda Lima, Sérgio Marrone, Reynaldo Gianecchini, Rodrigo Hilbert e Deborah Secco, chegou a abrir mão do cachê. Além disso, todo o lucro da bilheteria do filme foi revertido para a compra de uma casa para o clã, que vivia em um imóvel alugado em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

“Eu fui convidado por volta de 2007, porque esse filme demorou a ser filmado. A gente começou o projeto, me apresentaram ela como uma mãe de 50 crianças, que tinha toda uma história, que adotou crianças de rua. Eu comprei a causa, comprei o projeto, trabalhei também, como os atores, de forma voluntária, sem cachê, dividindo meu tempo, meus afazeres, assim como os atores”, conta Correa sobre a realização da produção em conversa por telefone com o Bahia Notícias.

O convite para participar da obra, afirma o co-diretor, partiu de Marco Antônio, que além de idealizador também roteirizou o longa-metragem. Na obra cinematográfica, o companheiro da parlamentar e cantora gospel – que na época ainda não possuía cargo público ou carreira musical – atuou, inclusive, como produtor executivo.

Segundo o diretor, apesar do contato meramente profissional, ele não conseguiu acreditar na autoria do assassinato, orquestrado – conforme apontaram as investigações do MPRJ – pela deputada e alguns de seus filhos e uma neta.

“Quando começou a história eu realmente nem pensei que ela podia ter feito isso, que fosse a mandante do crime, porque eu conheci uma outra pessoa na época. Embora eu não fosse e nem seja amigo deles e nem da família, pessoal, agi ali de forma profissional, eu tinha esse contato próximo nas filmagens, nas orientações, nos depoimentos dela para saber o histórico da vida dela e passar o máximo de veracidade numa história de um longa-metragem que é um documentário dramatizado, no qual ela mesma interpretou algumas cenas”, explicou.

Pela figura carismática da deputada e pela causa social que pregava, Flordelis foi convidada frequente de programas em emissoras de TV antes e depois do filme sobre sua vida. Atrações como o TV Xuxa, Hebe, Fantástico e Hora do Faro são algumas em que ela apareceu e lhe trouxeram visibilidade. Foi através delas que sua vida ganhou destaque nas telonas.

Hoje, depois das revelações, o diretor acredita que “foi uma decepção”, pois tanto ele quanto a equipe “compraram” o projeto por uma questão de empatia. “Você vê uma mulher que sai de uma comunidade, de uma favela, mal tendo o que comer, missionária, acolhendo crianças desabrigadas, crianças que estiveram no crime, que estavam sofrendo abusos na rua. E isso aí você não encontra no dia a dia”, afirma Correa.

Sobre a personalidade da cantora gospel, ele ressalta que ela transparecia ser “uma pessoa super passiva, super tranquila, uma pessoa que estava sempre ali próximo, e com muita calma, muita frieza, muita tranquilidade”. E, por vezes, “passava a palavra de Deus”.

“Quando algo na equipe não estava dando certo, no sentido de questão técnica… vamos supor, a gente já foi gravar uma vez, estava tudo preparado e começou a chover. Poxa, uma filmagem dessa são caminhões de equipamentos, gerador, e ela falou ‘calma, não há motivo pra se desesperar’. Então ela estava sempre ali acalmando, sempre como uma pessoa muito positiva, que levava uma palavra de bênção, uma palavra boa. Ela era uma pessoa extremamente segura das coisas que falava, muito tranquila, nunca, em nenhum momento, chegou a levantar a voz pra ninguém”, alegou.

“Essa personagem que ela [Flordelis] fez na época me convenceu e convenceu o Brasil e o mundo. Ela convenceu os atores, convenceu a mídia, todo mundo. Se hoje ela tirou a máscara, nos tempos atuais, é uma surpresa realmente pra todo mundo”, justificou o cineasta.

Anderson do Carmo, vítima do complô familiar, também demonstrava ser uma pessoa proativa no período em que esteve próximo à equipe de gravações. Antes de ser esposo de Flordelis, ele era filho adotivo da pastora e durante um período namorou Simone dos Santos Rodrigues, filha biológica do primeiro casamento da religiosa.

Apesar das controvérsias e acusações de que havia uma hierarquia no tratamento dado aos membros mais recentes do núcleo familiar, eles apresentavam um “comportamento muito coeso”, diz o diretor. “Todo mundo muito próximo, muito junto. Ela dando atenção para todos eles, os que estavam na gravação, os que estavam alí, os mais velhos ajudando como equipe operacional do filme, todo mundo ali pela causa”.

“Na época eu não vi nada [de comportamento suspeito]. Eu chegava pra filmar e via uma família funcional, amorosa, nada de anormalidade, isso eu tenho certeza do que estou falando. Ninguém via nada diferente, só muito amor envolvido na família”, completou Correa.

Questionado sobre a pssibilidade de realizar outra obra mostrando a reviravolta na história de Flordelis, Anderson Correa disse não saber responder, mas acredita que isso pode sim acontecer, só não sabe se ele colocaria a mão na massa em outro filme sobre a deputada.

“Se eu faria? Eu ia pensar um pouco e ver quem ia estar envolvido também. Eu hoje pensaria duas vezes, porque essa história, como você sabe, pegou todo mundo de surpresa no geral. Mas com relação à arte, ao meu ofício, como cineasta, diretor de cinema e de TV, você fazer um filme, um programa, uma série, é contar uma história através da arte, e o documentário é contar uma história verídica, então eu acho que pelo meu ofício, de repente, eu até faria sim”, argumentou. (Bahia Notícias)