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No povoado do Gereba, zona rural de Valença, um grupo de 12 mulheres extrai dos dendezais o que podemos chamar de néctar das moquecas, dos acarajés e das comidas de orixás. Com um árduo trabalho manual, tocam para frente uma alquimia ancestral, tradição de mais de 300 anos. Elas produzem o chamado dendê de pilão, um azeite considerado por muitos único no mundo. Um produto “batizado” com temperos e folhas de diversos aromas.

“Eu mesmo gosto de usar alho, cheiro verde, quioiô, alfavaca e um pouco de hortelã. Não sobra garrafa nenhuma aqui. Sempre tem gente querendo comprar. É de primeira qualidade. Quem compra volta. Agora mesmo eu não tenho nenhum dendê. Malmente tenho um pouquinho para colocar na panela”, avisa a agricultora Rosenilda Andrade dos Santos, 38 anos, que também faz beiju de coco e tapioca.

(Foto: Isaías Neto Ribeiro/Divulgação)

Assim como a comunidade do Gereba e de outras da zona rural de Valença, o CORREIO prospectou mais quatro localidades que produzem o azeite de pilão (ver lista abaixo). Mas, afinal, o que é melhor? Um dendê industrial e com boas qualidades físico-químicas ou o que é feito como há 300 anos, com todos os cuidados de colheita e tratamento do fruto? Solange Borges, 57 anos, da comunidade do Pinhão Manso, em Camaçari, diz não ter a resposta.

“Eu não sei cientificamente o que tem um bom dendê. Só sei que o que faço foi passado de geração em geração. É uma produção espontânea. Remete a minha ancestralidade. Pra mim, o que faz a qualidade do dendê é a energia. Fazemos um dendê selecionado, livre de veneno. Não tem como negar que essa energia, essa ancestralidade, influencia no sabor”, aposta Solange, que na última colheita extraiu cinco litros de 40 quilos de cachos do fruto. Acabou rápido.

(Foto: Sassá Souza: Divulgação)

Solange recebe visitas do mundo todo atrás do óleo sagrado. “A produção artesanal é diferenciada, bem menor. Recebo pessoas de todo o país e até de outros países. Muita gente vem aqui vivenciar essa feita de dendê. Principalmente agora que está escasso. Muita gente nos procurou depois das matérias do CORREIO”, riu Solange. “Agora é entressafra. Não tem como ter uma produção contínua”.

Na última semana, a capa do CORREIO e uma de suas reportagens repercutiu nas redes sociais e criou certa discussão. A matéria trazia que a Bahia havia perdido o posto de Terra do Dendê, já que o estado do Pará produz muito mais óleo de palma, 97% da produção nacional segundo dados de 2017. O texto se referia à produção, apesar de vir acompanhada de outra matéria que reconhecia as ligações ancestrais do dendê com a Bahia. Parte dos leitores contestou a abordagem.

Pesquisadora do dendê e proprietária do restaurante Casa de Teresa, a chef de cozinha Teresa Paim diz que nós é que somos os guardiões do azeite de dendê e que nas regiões do Baixo-Sul e Recôncavo é onde temos a maior expressão do fruto.

“O Pará tem uma monocultura produtiva do ponto de vista do volume, mas é aqui que temos o melhor “terroir” de dendê do mundo. Já rodei mercados africanos em todo o canto. Não tem dendê igual o nosso”, garante Teresa.

O terroir seria uma espécie de conjunto de fatores como topografia, geologia, clima, intervenção humana, cultura, história e tradição que caracterizam um produto. “O Pará tem cultura de produção ordenada, fazendas de dendê, são agricultores. Aqui ele brota espontâneo, livre, pois temos poucas fazendas. O dendê é a nossa alma, carrega nossa baianidade”, acredita Teresa.

“Lá no Pará é um azeite commodities. Aqui é artesanal, é tradição, cultura”, concorda o professor Alcides Caldas, do Instituto de Geociências da Ufba, que coordena um projeto para transformar a Costa do Dendê em um área de Identificação Geográfica (IG), o que garantiria um selo de qualidade de valor gastronômico e sociocultural ao nosso produto. Para ele, o dendê local não só é carregado de ancestralidade, mas, em algumas localidades, traz consigo uma série de saberes exclusivos.

(Foto: Divulgação)

Saberes como o de Anatelson Conceição das Neves, 47 anos, do Quilombo do Tereré, na Ilha de Itaparica. Herdou dos pais o jeito de colher, pilar, cozinhar e produzir o dendê. “Esperamos a lua certa, não pode ser a minguante. Tiramos ele perto de amadurecer. Lavamos antes de cozinhar e pilar. Tudo manual”, diz Anatelson, que consegue extrair uns 20 ou 30 litros de cada colheita. “Tem que estar com o coração leve. Com amor, o azeite se torna ouro”.

Características físico-químicas

A professora Deusdelia Almeida, do Grupo de Pesquisas e Estudos em Alimentação Coletiva da Escola de Nutrição da Ufba, contesta a visão de que nosso dendê é melhor. Deusdelia, que também coordena o grupo que tenta criar a Indicação Geográfica, pondera sobre as características físico-químicas do nosso azeite.

Ela diz que o azeite da Bahia em geral é mais ácido, entre 13% e 20%, enquanto que o fabricado pela indústria do Pará atinge níveis em torno de 5%. A quantidade de carotenoides, moléculas antioxidantes, também seria baixa em nosso azeite.

“Não adianta dizer que o azeite da Bahia é melhor nos aspectos físico-químicos porque não é. Ele tem menos carotenoide, menos tempo de indução e mais acidez”, diz a professora, que defende a criação de uma indústria cooperativada para os pequenos produtores.

“Precisamos de uma indústria com controle de qualidade. Até mesmo o nosso modo artesanal precisa ser melhorado. Um produto artesanal precisa das melhores condições possíveis”, afirma Deusdelia. E a opinião das baianas de acarajé? Essas, como compram em quantidade, acabam optando pelos latões do dendê paraense, integrais. Segundo elas, esses favorecem à fritura porque são mais uniformes e contém uma quantidade maior da flor do dendê (parte avermelhada) e menos o bambá (parte amarelada), que seria melhor para moquecas e outros pratos.

“Aqui na Bahia já tivemos bons azeites para fritura, mas hoje os melhores para isso são do Pará. Mas para fazer uma moqueca eu gosto muito de usar o azeite de pilão daqui da Bahia, que é maravilhoso”, afirma Angelimar Trindade Santos Sousa, 63 anos, que tem um ponto de venda há 12 no IAPI. “As baianas são mulheres sábias”, conclui Deusdelia.

Mas a professora reconhece que falta uma análise sensorial do nosso dendê, que seria um método para medir, analisar e interpretar os atributos do produto. “Isso requer uma série de exigências: seleção de provadores, laboratórios, preparado das amostras e interpretação de testes estatísticos”, enumera.

“Empiricamente muitos profissionais da cozinha ressaltam que o sabor e a cor do azeite de dendê baiano tem qualidade superior ao paraense. Não tenho uma opinião cientifica sobre este tema, já que faltam pesquisa sobre análise sensorial de azeite de dendê, um campo vasto e promissor. Poderíamos criar escalas de sabor, cor, flavor do azeite, alguns dos mais importantes aspectos de qualidade de um alimento”, explica a professora.

Mas Deudelia admite também que os dendês de pilão baianos podem ser de excelente qualidade. Ainda assim, diz ela, sua produção não compensa o trabalho. “O principal é tratar bem o fruto. Em alguns casos, de fato, há toda uma delicadeza na hora de lidar com os frutos para os azeites feitos sob encomenda. Mas, essas pessoas, a maioria mulheres, têm uma produção e rentabilidade baixa. Elas podem e devem receber incentivos para melhorar e ganhar mais no valor agregado”, afirma a professora.

Análises

A qualidade do azeite de pilão feito na Bahia acabou sendo comprovada por uma das orientandas da própria Deusdelia. Em sua dissertação de mestrado, a nutricionista Rafaela dos Santos Bomfim, natural de Valença, analisou os azeites de dendê de comunidades do Baixo-Sul. Ela chegou à conclusão que, para além das boas harmonizações gastronômicas, fabricamos azeites cientificamente excelentes.

Nos povoados de Gereba, Orobó e Cajaíba, entre outros da Zona Rural de Valença, Rafaela encontrou os melhores dendês do ponto de vista físico-químicos. O projeto Azeite de Pilão: Cultura, Tradição e Culinária, realizado através de edital aprovado pelo Centro de Estudos Afro Orientais da Ufba (Ceao), capacitou as mulheres para fazer um azeite com ainda melhor qualidade.

(Foto: Isaías Neto Ribeiro/Divulgação)

Na pesquisa, ela descobriu 4 formas distintas de extração de azeite de dendê no município: de pilão, rodão pouco mecanizado, rodão mecanizado e a semi-indústria. As diferentes técnicas influenciam diretamente na qualidade final do produto. Qualidade esta que sofre influência desde o momento da colheita, em que os cachos são atirados no chão e os frutos são machucados, o que dá início ao processo de fermentação que contribuirá para aumento da acidez do azeite. O de Pilão, feito pelo grupo de mulheres, foi considerado o melhor azeite.

“Por todo este cuidado na escolha dos frutos e em todo o processo de colheita e produção, o azeite de pilão é um azeite com menor acidez em relação as outras técnicas e maior quantidade de carotenoides e tempo de indução. Estas moléculas são responsáveis pela cor alaranjada do azeite, antioxidantes e com atividade pró vitamina A”, explica Rafaela.

A técnica de rodão pouco mecanizado é derivada do antigo rodão de tração animal, apresenta apenas o digestor como equipamento, sendo o resto da produção semelhante ao de azeite de pilão, mas com maior produção (ao invés de bacia para separação são utilizados tanques e recipientes maiores para cocção). Esta técnica foi que apresentou índices de qualidade inferiores às demais. “Os produtores não possuíam capacitação técnica e incentivos governamentais para melhorar suas estruturas”, explica Rafaela.

Na técnica de rodão mecanizado (semi- indústria) há pouca participação manual. Diversos equipamentos são utilizados na produção. Apesar dessa técnica ser mais eficiente do ponto de vista de maior capacidade de produção, não há um cuidado na seleção dos frutos e as formas de armazenamento não contribuem para melhor garantia da qualidade. “Nessa técnica, os índices de qualidade apresentaram-se inferiores”, afirma Rafaela, que vê um grande potencial no nosso azeite.

“Do ponto de vista de qualidade, o azeite do Pará se destaca em relação ao da Bahia, mas essa comparação é difícil de ser feita, visto que aqui os produtores não receberam os mesmos incentivos governamentais. Acredito que, se a Bahia recebesse o apoio e investimento necessários, o estado voltaria a ser destaque nacional na produção do azeite”.

Fazer dendê de pilão é um trabalho árduo. Primeiro se seleciona minuciosamente os melhores frutos. Depois são colocados para amolecer embaixo de uma lona durante três ou quatro dias. Em seguida são lavados com bastante cuidado e colocados para cozinhar. Vão então para o pilão para que as fibras soltem do caroço. A borra que sobe é colocada para cozinhar. Vira óleo. O néctar dos orixás. “Nosso dendê harmoniza melhor com nossos pratos”, diz chef de cozinha

Aos dendês de pilão e até de rodões fabricados na Bahia, costumam ser acrescentados folhas e ervas, como quioiô e alfavaca, usadas, inclusive, em obrigações e oferendas de orixás. É o que afirmam especialistas de gastronomia e os próprios produtores. “O do Pará pode até ser puro. Mas o nosso dendê, além da ancestralidade e tradição, tem elementos que trazem aroma e sabor extra. Isso só se encontra aqui. E cada dendê tem sua característica própria”, diz Fabrício Lemos, chef renomado do Restaurante Origem, que usa nas suas “finalizações” os dendês do Kaonge ou do Tererê.

(Foto: Divulgação)

“Não gosto muito de dizer o que é melhor ou pior, mas que o nosso dendê harmoniza melhor com nossos pratos, que são de matriz africana, isso com certeza”, observa o chef do Origem. Fabrício faz um trabalho de agricultura familiar não só com dendê, mas também com licuri, umbu e outros frutos. Ele já previa a escassez do nosso azeite.

“Com o licuri e o umbu já aconteceu o que está acontecendo com o dendê hoje na Bahia. Não há plantio. A maioria das palmas é antiga e está na mata atlântica, não existe sistematização para colheita. Não queremos desmatamento, mas uma preocupação com o replantio. Então, era notório que um dia o dendê iria se tornar escasso”, diz Fabrício. “Hoje a produção vem de outro estado e a gente coloca o rótulo como daqui. Precisamos valorizar nossos produtores e investir neles”.

Fabrício traz ainda a questão do transporte, que também influencia na qualidade do dendê. “Nesse aspecto, o nosso azeite vai ser sempre melhor que o do Pará. Porque ele é feito aqui, não viajou muito. A não ser que tenha ficado muito tempo armazenado e sem uso”, destaca Fabrício. “É como o azeite de oliva. O Brasil hoje produz um azeite que não deixa nada a desejar ao da Europa. O azeite europeu já chega aqui cansado”.

Comunidades onde se encontra o dendê de pilão

– Povoados de Gereba, Orobó e Cajaíba entre outros da zona rural

A região tem fama nas feiras de Salvador como produtora dos melhores dendês de pilão

Município: Valença (Baixo-Sul)

– Quilombo do Tereré (Ilha de Itaparica)

Área de grandes dendezais, uma família retomou a tradição do dendê de pilão há três anos

Município: Vera Cuz

– Quilombo do Kaonge

Comunidades quilombolas mantêm tradição no Vale do Iguape

Município: Cachoeira (Recôncavo)

– Agro Vila Pinhão Manso

Projeto Culinária de Terreiro investe no dendê de pilão

Município: Camaçari

– Fazenda Acauã

Vale do Jequiriçá rende excelentes dendês de pilão

Município: Mutuípe

Como comprar um bom dendê:

Para fritura: prefira o que tenha a maior parte avermelhada, a chamada flor do dendê, que fica na parte de cima da garrafa. A saturação dela é mais demorada, o que permite que o alimento frite de forma homogênea antes de “queimar”

Para moquecas e outros pratos: prefira o que tem a parte amarelada, o chamado bambá, dividida com a outra. O bambá dá uma melhor consistência às moquecas e, em alguns casos, sequer é preciso usar leite de coco.

Coloração: a parte amarelada deve estar viva, amarelo ouro. A parte vermelha deve teve ter um vermelho alaranjado. Isso demonstra que o dendê é novo e foi bem armazenado. Ou seja, suas propriedades estão ativas. Evite os que tendem para a cor marrom.

Aroma: Se for possível abrir a garrafa, perceba o seu odor. “Tem que vir o cheiro do fruto, um cheiro vivo, de aroma intenso e floral”, diz o chef Fabrício Lemos. “Perceba também se não tem um odor rancificado, aquele cheiro de manteiga alterada. É a oxidação”, contribui a nutricionista da Ufba, Deusdelia Almeida.

Recipiente: compre os dendês engarrafados em recipientes de vidro, que mantêm por mais tempo suas características físico-químicas. Correio da Bahia