Desde que começou o curso de Direito, a jovem Eva Luana da Silva, 21 anos, decidiu que seria juíza. Escolheu estar do lado da Justiça, ainda que nem sempre isso tenha sido recíproco. A Justiça decepcionou Eva no passado. Deixou-a à própria sorte. Aos 13 anos, quando denunciou o padrasto por estupro de vulnerável, a então adolescente foi forçada a retirar a queixa. Nesta quinta-feira (21), Eva conversou com a imprensa e narrou os momentos de terror que viveu com o seu padrasto (leia depoimento na íntegra abaixo).

O sistema falhou com Eva – e fez com que ela vivesse seu maior pesadelo por mais de oito anos. “Eu não tinha certeza se eu ia conseguir sair com vida, mas sabia que eu tinha que dedicar meu tempo a uma coisa que eu gostasse”, diz ela, hoje no 7º período. Estupros, agressões, torturas física e psicológica se tornaram a rotina da jovem e de sua mãe, moradoras de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS).

Dizer que a história parece o roteiro de um filme de terror talvez nem dê a verdadeira dimensão do que Eva passou. Na terça-feira (19), quando a estudante publicou em seu perfil no Instagram um relato, em cinco partes, contando detalhes sobre o sofrimento dos últimos anos, as postagens viralizaram. Em pouco mais de 24 horas, uma das fotos chegou a ter 239 mil curtidas. Artistas como Kéfera e Alice Wegmann compartilharam as postagens.

“Meu caos teve início quando eu tinha 12 anos, minha mãe era agredida, abusada, violada e torturada quase todos os dias”,escreveu, em sua página.

As agressões continuaram com sua mãe, mas evoluíram: além da genitora, o agressor passou a estuprar e abusar da própria enteada.

O agressor é apontado como Thiago Oliveira Alves, seu padrasto. Um paulista que veio morar na Bahia depois de ter sido preso por roubo de carro em São Paulo. Na casa de Eva, ele chegou devagar. Engatou um namoro com a mãe dela e decidiu passar uns dias na casa da família. ‘Uns dias’, no entanto, se transformaram em eternidade. Ele não saiu mais de lá, até o início deste mês de fevereiro.

Eva estudava Direto na mesma faculdade que seu algoz (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Controle
Eva conta que, aos poucos, Thiago tomou conta de tudo. Da família, da casa, da loja de materiais elétricos que a mãe dela tem em Camaçari. Isso logo evoluiu para o controle de tudo que ela fazia na vida. Para onde ia, quando ia, com quem ia, como se vestia. Ela era obrigada a mandar fotos, praticamente em tempo real, de todos os lugares onde estava.

Aos 13 anos, quando decidiu denunciá-lo, foi com a mãe à delegacia. Estavam certas de que aquele terror acabaria. Antes de ir à polícia, porém, passaram a noite na casa de uma amiga que as apoiava.

“Quando a gente estava na delegacia, ele foi para a casa dessa amiga. Invadiu a casa dela armado. Deu chute no portão e entrou com vários homens. E eu percebi: não posso ir para a casa de ninguém. O único lugar que eu tenho para ir é a delegacia. Só que ele me ameaçou, me fez retirar a queixa e eu não consegui dar prosseguimento a isso”, contou, em entrevista ao CORREIO, na manhã desta quarta-feira (20).

Só que, a partir dali, as coisas só pioraram. A quase denúncia “deu em nada” e resultou em ainda mais sofrimento. “Ali eu perdi a minha alma. E o que eu fui denunciar,  1 ano de sofrimento, se multiplicou em mais 8 anos”, narrou Eva, em seu Instagram.

A sociedade achava que eles formavam uma família perfeita, mas a realidade era outra. Eva conta que foi obrigada a comer uma pizza tamanho família e beber dois litros de refrigerante em 10 minutos. Como não conseguiu, levou socos no rosto. Recebeu chutes até cair no chão.

“Ele enfiou as pizzas na minha boca me chamando de animal, eu vomitei e comi meu próprio vômito.  Meu gato comeu um pedaço e lambeu outro, ele me obrigou a comer o que ele havia lambido. Eu apanhei a noite toda e no outro dia eu tinha que fingir que nada havia acontecido”, escreveu. 

Eva não podia ter amigos, muito menos namorado. O agressor tinha total acesso ao seu celular, inclusive às mensagens do WhatsApp. Todas as suas senhas eram monitoradas por ele. Durante os estupros, era agredida. Engravidou dele e abortou mais de uma vez. “Nunca pude ir ao médico pra fazer curetagem. Todas as vezes sangrava e passava mal a noite inteira. Já vi bebês inteiros no vaso sanitário”, diz.

Todo o dinheiro da casa era entregue a ele. Houve noites em que foi forçada a dormir na casa da cachorra e em que passou horas sem comer. Tinha que ficar madrugadas inteiras em pé, até o dia amanhecer. Eva foi até mesmo obrigada a sair nua pela rua, à noite. O agressor dizia que era para ela ser estuprada por outros homens.

Mesma faculdade
Quando fez vestibular para Direito, foi aprovada em mais de uma universidade. Passou na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), na Unijorge e até na Universidade de Coimbra, em Portugal, que aceita a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Mas foi Thiago quem escolheu onde ela iria estudar: na Faculdade Metropolitana de Camaçari (Famec), onde ele já fazia o curso há um semestre.

Queria vigiá-la. “Ele ficava me olhando na porta da sala. Às vezes, entrava e pegava o meu celular de surpresa e levava. Ele definiu que eu tinha que estar lá”, revelou, em entrevista. Na faculdade, Eva era obrigada por Thiago a fazer seus trabalhos. Tinha que sair mais cedo de sua própria aula para, pelo celular, responder às questões das provas dele.

Em agosto, começou a estagiar no Fórum de Camaçari. Naquela época, Eva não sabia, mas seu destino estava começando a mudar. Foi quando conheceu Mateus Cascais, o jovem que, mais tarde, se tornou seu namorado. “Ele já tinha tentado se aproximar de mim várias vezes, mas eu sempre dizia: ‘não, não fala comigo’. Mas todos já percebiam que tinha algo de errado”, lembra.

Ela se sentiu, finalmente, segura para desabafar. Contou tudo. Implorou para que ele não fizesse nada. Disse que já tinha denunciado e isso só piorou as coisas. Só que Mateus pediu ajuda ao juiz da vara, sem contar que era Eva quem passava por aquela situação.

“O doutor foi bem claro com ele. Falou: ‘e você vai deixar isso continuar?’. Ele se sentiu no dever de ajudar mais, mas não podia tirar minha autoridade porque era minha vida. Conversou comigo até me convencer que eu fosse falar ao juiz que era eu”, disse Eva.

Com ajuda do juiz, registrou uma queixa na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Camaçari no dia 30 de janeiro. Naquele mesmo dia, não voltou mais para casa. Foi acolhida e levada para um lugar seguro, com ajuda de uma de suas professoras – Maria Cristina Carneiro, que hoje é sua advogada.

‘Desaparecimento’
O padrasto espalhou, por toda a cidade, que a enteada estava desaparecida. Sites de notícia locais chegaram a publicar notas sobre o suposto sumiço. No dia seguinte, dia 31, ele e a mãe de Eva foram intimados a comparecer à delegacia, para prestar depoimento sobre o desaparecimento. Lá, a delegada contou tudo à mãe da jovem.

Segundo a advogada da estudante, Maria Cristina Carneiro, Eva está, desde o dia 3, com uma ‘mãe social’ – uma pessoa designada pela Justiça para acolher alguém em situação de vulnerabilidade.

“Nunca vi uma história tão macabra como o sofrimento dessa menina. Por isso, vamos fazer o que estiver ao nosso alcance para que ela fique sob a minha guarda e a minha proteção”, disse a defensora. 

A mãe de Eva também foi levada para um abrigo, assim como sua outra filha, de seis anos. A advogada acionou o Ministério Público do Estado (MP-BA), através da promotora Márcia Teixeira, coordenadora do Centro de Apoio aos Direitos Humanos do órgão. Em seguida, o MP acionou a Superintendência de Ação Social do estado para colocar a mãe e a irmã da estudante de Direito em um lugar seguro.

“Esse caso, para além de Eva, nos mostrou o quanto é frágil o acolhimento, ainda que funcione. Precisamos pensar um acolhimento e abrigamento mais humanizado, para ter um fluxo mais sistematizado”, diz a promotora.

No dia 31 de janeiro, a Justiça concedeu uma medida protetiva para que Thiago não se aproxime das três mulheres. No entanto, segundo Eva, há testemunhas de que ele tenha quebrado a medida, tendo ido à casa delas mais de uma vez. O padrasto só foi preso no dia 13.

Ele, que era assessor técnico da Secretaria Municipal de Habitação de Camaçari desde o dia 16 de janeiro, foi exonerado no dia 1º de fevereiro. Tanto o órgão quanto o titular da pasta, Júnior Borges (vereador licenciado), publicaram notas de repúdio a Thiago nesta quarta-feira (20).

De acordo com o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA), o processo corre em segredo de justiça.

Confira o depoimento de Eva Luana à imprensa, nesta quarta-feira (20), na íntegra

“Eu quero ser juíza. Já entrei na faculdade pensando nisso. Eu não tinha certeza se eu conseguir sair com vida, mas sabia que eu tinha que dedicar meu tempo a uma coisa que eu gostasse e o Direito era uma coisa que eu gostava. Por mais que eu tivesse tentado uma vez, eu pensava: eu tenho que fazer alguma coisa. Eu não sabia que seria desse jeito, mas eu imaginei que, se um dia eu fosse livre, eu queria fazer alguma coisa que eu gostasse. 

E o Direito traz isso para mim. Mesmo que eu não vivesse aquilo, as leis e tudo que eu lia, eu sabia que ainda tinha algo que eu poderia fazer, mesmo que não fosse por mim, mas por outras pessoas. Então, por isso, eu me dediquei tanto. 

Eu digo que eu não tinha vida. Tudo era disfarçado. Era uma mentira. Mas o Direito era onde eu podia falar a verdade. Era onde eu podia ser eu. Então, eu me dedicava a estudar e entender completamente, por mais que fosse difícil, para mim, ter tempo e ter cabeça. Eu me dedicava ao máximo só para me sentir realizada naquilo que era a única coisa que eu fazia de verdade. 

Eu fui estagiária do Tribunal do Júri e, lá, eu encontrei uma força. Eu via que a Justiça servia para outras pessoas, então, ela poderia servir para mim. Mas eu não tinha coragem. Eu tinha muito medo e era muita ameaça. Pode parecer: ‘como você estava inserida?’, ‘Você ia para o fórum todos os dias, você tinha acesso a pessoas, a advogados, juízes. Como é que você não conseguiu?’. Mas, a partir do momento em que você está perseguida, é como se ele estivesse comigo em todos os lugares. 

Eu já não tinha mais vida e, por mais que eu estivesse em algum lugar, ele estava sempre comigo no celular. Ele estava sempre perguntando, mandando eu tirar foto de onde eu estava. Diversas vezes, eu tinha que tirar foto do que eu estava fazendo e eu tinha que fazer tudo em tempo real. Não foi um cárcere, mas, ao mesmo tempo, eu estava presa. 

Eu não tinha vida. Tudo eu tinha que esclarecer, tudo eu tinha que estar falando com ele. 

E, ao mesmo tempo, ele me monitorava e achava de todas as formas. 

Minha mãe não saía de casa praticamente, porque a gente tem uma empresa em Camaçari. Ela trabalhava praticamente o dia inteiro. Éramos escravas, literalmente, dele. Financeiramente, de todas as formas. Porque tudo que fazíamos era em prol dele. 

Tudo que eu tinha que fazer, eu tinha que pedir autorização. Qualquer coisa. Até mesmo no trabalho, quando me mandavam uma solicitação ou me pediam para ir mais cedo, qualquer coisa assim. Eu tinha que mandar print de tudo. 

Meu celular está na perícia e dá para ver que tem muito print, muita foto. Com quem eu estava, como eu estava. Tudo. Então, ela (a mãe) também passou pela mesma pressão que eu. Muitas vezes, eu digo que ela, em relação a agressões, começou muito antes de mim.

Eva foi torturada por oito anos (Foto: Marina Silva/CORREIO)

***

Primeiro, era só com ela. Primeiro, era aquele ciúme obsessivo dela. Primeiro, eu via minha mãe sendo agredida praticamente todos os dias. Eu ouvia os gritos dela. Os vizinhos acendiam as luzes, mas ninguém ajudava. Eu ouvia ela tentando ouvir a porta. Ela entrou no meu quarto várias vezes, mas ele sempre chutava (a porta). Chutava, chutava, até que entrava. 

E ela começou muito antes de mim essa luta toda, então, ela também não conseguia falar. 

Eu não lembro a idade exata que eu tinha quando ele entrou em nossa vida. Mas foi algo muito rápido. Lembro que eles ficaram juntos e logo ele veio morar. Era para passar uns dias, depois esses dias foram se perdurando, se perdurando. Ele disse que ia para São Paulo e acabou que não saiu mais da minha casa. 

Ele foi tomando conta de tudo. Primeiro, foi tomando conta da loja. Foi à frente, com se ela não soubesse tomar conta, que era para ela descansar, que era para ela confiar nele. Dizia que ela trabalhava demais.

E depois, ele foi tirando nosso mundo da gente. Ele foi tirando as pessoas que cuidavam de mim. 

A gente vivia numa classe tranquila, então, ele foi falando que não tinha necessidade de babá, que eu podia crescer sozinha. Depois, ele começou a falar que eu não precisava fazer cursos, que eu tinha que sair dos meus cursos e ele começou a me tirar totalmente do meio, a ponto de eu falar que eu não ia mais morar com eles, que eu queria ir para a casa da minha avó. 

Mas, até então, as agressões eram só com ela e eu entendia porque ela não tentava me resguardar de alguma forma, porque ela tinha medo dele. E eu tentei várias vezes sair, mas eu não conseguia sair e deixá-la lá, até porque não tinha tomado as proporções que tomou depois. 

***

O primeiro estupro foi com 12 anos. 

Minha mãe soube depois que a gente precisou denunciar, porque, depois desse abuso, ele praticamente matou ela. Faltou pouco para ela morrer. Eu não tinha contado para ela e a gente teve uma noite muito tortuosa porque ele chegou e começou a bater nela, que tem asma. Ele bateu ao ponto de ela desmaiar. Quando ela desmaiou, ela começou a ter convulsão e ele segurou a bombinha dela. 

Ele esperou ela desmaiar e voltar. Ele colocava a bombinha na boca dela e, quando ela se recuperava, ele fazia tudo de novo. E começou a contar para ela o que tinha acontecido. Ficava falando aquilo e dizia: ‘se ela morrer, vai ser culpa sua’. ‘Se sua mãe morrer, vai ser culpa sua, porque olha o que ela está passando por causa de você’. 

Ele sempre me culpava por tudo, como se fosse eu a culpada de tudo. Tudo que ele fazia comigo ele também culpava ela, em relação aos maus tratos. Ele dizia que ela não tinha me educado direito, que eu era muito rebelde, porque, no começo, eu ainda enfrentava, então, eu apanhava muito. 

Eu enfrentava. Eu contava para os meus amigos, tanto que, depois que eu divulguei, muitos dos meus amigos estão fazendo vídeos e dizendo que eu realmente contava, chamava todo mundo, mostrava que estava roxa. Eu pedia ajuda, mas as pessoas não se metiam. 

Muitas vezes que a gente saiu na rua pedindo ajuda, os vizinhos não ajudavam. Muitos fechavam a porta, literalmente, porque tinham medo dele. Teve uma época que ele bebia muito e andava com gente muito pesada. Tem relatos de drogas. Enfim, então todo mundo tinha medo dele. 

Era totalmente homofóbico. Já bateu num vizinho nosso, já jogou o carro em cima de várias pessoas da rua só pelo fato de serem homossexuais. Ele é racista e homofóbico, então as pessoas sabiam que ele era violento. Qualquer briga que ele tinha, por algo pequeno que fosse, os vizinhos já faziam chegar à gente. 

Quando viam que ele tinha saído, eles iam lá perguntar se a gente queria alguma coisa. Mas, nunca, em nenhum momento, era ‘vamos denunciar’. Ninguém. Todo mundo vinha com aquele discurso: ‘a gente está aqui, mas vocês precisam fazer alguma coisa’. 

Mas, na verdade, ninguém ajudava a sair dessa. 

***

Eu acho que denunciar (aos 13 anos) foi uma das piores situações que aconteceu comigo, porque eu confiei. Eu tinha certeza. Eu falei: mãe, vamos. E ela ficou super feliz por a gente estar indo. Quando a gente foi denunciar, a gente tinha saído de casa com muito medo, porque ele já tinha ligado. Ele disse que, quando chegasse em casa, ia fazer coisas muito piores do que tinha feito. 

E a gente saiu correndo, foi para a casa de uma colega próxima que, inclusive, já tinha cuidado de mim. A gente ficou lá a noite inteira. No outro dia, a gente foi fazer a denúncia.

Só que, enquanto a gente estava na delegacia para fazer a denúncia, ele já foi para a casa dessa amiga. Invadiu a casa dela armado. Deu chute no portão e entrou com vários homens. 

Aí, eu já estava com medo. E percebi: não posso ir para a casa de ninguém. O único lugar que eu tenho para ir mesmo é a delegacia. Só que ele me ameaçou, me fez retirar a queixa e eu não consegui dar prosseguimento a isso. 

Eu também não tinha voz. Todo mundo que tentava nos ajudar, ele ameaçava de alguma forma. Ele invadiu uma casa com uma família inteira armado, cheio de homem junto. Então, a única coisa que eu fiz foi ouvir o que ele estava falando e a gente voltou para casa. 

Eu tinha medo de acontecer alguma coisa pior, mas eu senti ali que eu não tinha para onde ir. Eu não podia pedir ajuda, porque as pessoas iam correr riscos por causa de mim, como aconteceu agora também. E a Justiça, que era para estar ali… 

Eu não tinha saída. Não tinha para onde ir. Quando eu pensei em fugir, ele ameaçava todo mundo. Então, pensei que eu não ia mais conseguir sair dessa situação. 

Depois dos abusos e tudo que foi acontecendo, eu fui perdendo minhas forças para tudo. Eu não tive infância, não tive adolescência, eu pulei todas essas etapas. Mas, até então, eu sempre falava ‘estou viva’. E tem gente que não consegue sobreviver depois de uma denúncia, então eu sempre fui muito grata a Deus porque, mesmo ele sabendo que a gente foi lá, Deus não permitiu que ele viesse nos matar. 

Mas ele nos matou aos poucos. Ele foi tirando tudo que me fazia viva, aos poucos. E ele fazia questão de mostrar isso todas as vezes. Ele não chegava só batendo. Ele não batia por algum motivo específico. Ele se planejava durante horas. Já ficava me ameaçando pelo celular: 

Dizia: ‘ó, quando você chegar em casa, vai acontecer isso. Vá se preparando’. E era a noite inteira. Não me batia uma, duas horas, não. Ele me batia e depois ficava falando várias coisas: ‘Você é um lixo’, ‘você não merece viver’. Ele ficava falando muitas coisas assim, que era culpa minha. Que ele só fazia aquilo porque eu provocava aquilo nele. 

Os abusos começaram quando ela tinha 12 anos (Foto: Marina Silva/CORREIO)

E era durantes noites inteiras, ao ponto de ele não me deixar dormir. Ele falava que, se eu dormisse, ia me beliscar com alicates e coisas do tipo. E, às vezes, eu cochilava e já acordava com porrada. E não conseguia mais dormir desse jeito. 

Ele chegou a me colocar em pé. Eu tinha que passar uma noite inteira em pé, até de manhã, e depois ir trabalhar normalmente. Ele olhava para mim e falava: ‘você já sabe. Se alguém perceber de alguma forma, você já sabe o que vai acontecer. Sua mãe vai estar aqui em casa. Quando você chegar, já vai estar pronto. Você vai ver o que você vai fazer com sua mãe, se você contar para alguém’. 

O que mais me marcou foram os estupros, sem dúvida. Porque, ali, eu não entendia porque estava acontecendo aquilo comigo. 

***

Como eu falei, eu já não tinha certeza se eu ia continuar viva. Ultimamente, estava muita obsessão. Ele estava muito pior. Todos os dias, toda hora, muita pressão. Toda hora era com metas e minutos. ‘Ó, se você não fizer isso até tal hora, vai acontecer isso’. Então, era muita perseguição. 

Eu não estava conseguindo mais digerir nada daquilo. Já tinha tentado me suicidar várias vezes. Tinha tentado de novo, então, isso aqui eu cortei (mostra o braço direito) não foi nem para me suicidar. Foi porque eu tinha raiva de mim. Então, eu cortei porque eu queria sentir aquela dor saindo de alguma forma de mim. Eu precisava botar para fora. 

Foi quando as pessoas começaram a se aproximar e a reparar. E Mateus (namorado de Eva) já tinha tentado se aproximar de mim várias vezes. Ele não entendia. Eu sempre dizia: ‘não, não fala comigo’. Eu joguei o telefone assim e falei para não falar comigo. Ele deixou quieto, mas todos já percebiam que tinha algo de errado. 

Eu pensei: eu vou morrer de qualquer jeito. Ele vai me matar, então, eu preciso desabafar. Se acontecer qualquer coisa comigo, alguém tem que saber de tudo, literalmente. Eu comecei a falar para ele, mas comecei a falar dos problemas. Comecei a falar, aos poucos, os problemas, e ele ficou o dia inteiro conversando comigo. E eu me senti segura pela pessoa que ele representava para mim. 

E eu falei. 

Quando falei, falei aos poucos. Mas senti que eu tinha falado coisas muito pesadas. Ele ficou em choque, sumiu por alguns minutos. Quando ele voltava, não conseguia reagir. Implorei para ele não denunciar, não fazer nada. Eu falei: ‘eu já denunciei e não vai dar certo. Ele vai sair de novo e vai matar todo mundo’. 

Mateus foi me ajudando a me dar força, psicologicamente, aos poucos. Até que ele não aguentou mais e pediu ajuda para o nosso juiz, nosso chefe da vara. Ele conversou, mas não falou que era eu. Disse que era uma prima. 

E o doutor foi bem claro com ele. Falou: ‘e você vai deixar isso continuar?’. Ele sentiu no dever de ajudar mais, mas não podia tirar minha autoridade porque era minha vida. Conversou comigo até me convencer que eu fosse falar ao juiz que era eu.

Mas, até então, não tinha uma denúncia. Não tinha nada planejado. E, aí, quando eu cheguei no fórum, ele já estava me esperando e sabia. O doutor já sabia de tudo. Eu me senti acolhida. Ele não me julgou. Ele simplesmente olhou para mim, me deu um abraço e disse que estava comigo. Ele me tratou como uma filha, literalmente. Ele foi muito humano. Eu fiquei com ele alguns momentos, mas eu não consegui contar tudo. 

Eu também vi que Mateus estava lutando, que estava colocando a vida dele em risco a partir do momento que desse a cara a tapa para a sociedade. Sabíamos que meu padrasto ia persegui-lo, ia atrás dele. E, mesmo assim, ele estava ali comigo. 

Quando conversaram comigo, não teve aquela coisa de me convencer. ‘Você tem que fazer isso’. Mas eu me senti tão amada, tão protegida, e vi que tinha saída, sim, e que todo o meu terror era psicológico, que eu poderia, sim, gritar. Eu pensei: se for para morrer daquele jeito, prefiro morrer lutando e tentando. 

Vi que ainda tinham pessoas boas ao meu lado. E falei: ‘quero, vamos’. A gente decidiu ir para a delegacia e, de lá, eu já não voltei mais para casa.
Enquanto eu estava na delegacia, a gente até pensou: ‘A mãe dela não pode ficar sozinha agora, porque vai saber o que vai acontecer com ela’. Só que eu também não tinha condição psicológica de fingir que eu não tinha falado tudo aquilo. Eu não ia conseguir voltar para casa. Eu passei duas, três horas, não sei, na delegacia. Eu estava em estado de choque. 

***

Enquanto estava na delegacia, ele já tinha me ligado, porque eu não estava atendendo. ‘Onde é que você está? Cadê doutor Waldir? Já passei no Fórum e você não está no Fórum’. Ele começou a mandar várias mensagens. Meu celular descarregou na hora, mas a delegada e o juiz viram as mensagens chegando e ele pedindo foto de onde eu estava, porque eu não estava atendendo.

Minha mãe teve que ficar em casa porque eu não poderia voltar para casa naquela situação. Então, a única coisa que pensamos foi: ela tem que sair daqui. 

E eu saí. 

É uma vida tão macabra que, como que uma pessoa saiu do trabalho 18h, deu 19h30 e está desaparecida? Tanto que os policiais falaram: ‘ela não está na casa de uma amiga, de um namorado? Está muito cedo’. E minha mãe começou a se desesperar dizendo ‘ela não tem amigo, ela não tem ninguém’. 

Eles começaram a fazer uma vigília me procurando. Ele chamou todo mundo, inclusive, o número que colocou para procurar foi o dele. Uma pessoa desaparecida, com um número só para contato, e era o dele. 

Depois, minha mãe nos contou que ele ficava falando ‘tomara que tenha acontecido alguma coisa muito ruim com ela. Se não tiver acontecido, eu mesmo vou fazer com minhas próprias mãos. Ela está brincando comigo, está brincando com fogo. Se ela tiver denunciado, eu mato vocês. Posso ser preso, passar 20, 30 anos, mas, quando eu sair, vou procurar vocês até no inferno’. 

E ele falava esse tipo de coisa. Era o tempo inteiro repetindo isso. Minha mãe disse que ele falou que ‘tomara que eu estivesse numa maca, toda cortada, porque, se não estivesse, ele ia fazer isso’. Colocou a cidade inteira para me procurar. 

Ele tem uma influência na cidade por ser assessor de um vereador (Thiago era assessor técnico da Secretaria de Habitação de Camaçari) e conseguiu acionar tudo. Mas ninguém sabia de nada, então, todos pensaram que era, realmente, como uma filha desaparecida. Todas as pessoas achavam que era isso, porque eu tinha que assumir para a sociedade que gostava dele.  

E nas pouquíssimas vezes que eu consegui demonstrar para alguém que não era isso, a gente pagou muito caro. Já teve quem falou ‘não era para você ter falado com ela daquele jeito’ ou ‘eu percebi o olhar grosso com ela, não faça isso com ela’. Na hora, ele fazia um show. Até me abraçava, mas quando chegava em casa…

Então, eu me prendia para todo mundo. O máximo de felicidade que eu pudesse demonstrar, eu demonstrava. 

E teve essa vigília. Minha mãe disse que a cidade inteira ficou até 3, 4 horas da manhã. Os vereadores, todo mundo me procurando lá em casa. E ele começou a expulsar todo mundo. ‘Não, vão para casa. Não vamos encontrar ela agora, não vai adiantar nada’. E minha mãe disse que começou a ficar com medo e começou a pedir ajuda. 

Pedir ajuda no sentido de dizer que não queria ficar sozinha lá. Ela ficou só com uma amiga da família. Essa amiga viu várias vezes ele gritando com ela, não deixava ela sair na varanda. Tinha muita gente ao redor, muita gente procurando, e ele não queria que ela saísse de casa. 

Nessa noite, ele não podia fazer nada porque tinha muita gente. Já tinha a mídia de Camaçari me procurando, mas ele ameaçou muito com palavras. Ela disse que estava com medo, que estava orando para que ele não me encontrasse. Porque, se ele me encontrasse, ele ia fazer alguma coisa pior. Principalmente se achasse que eu tinha fugido. 

Então, ela começou a orar para isso. Para que ele não me encontrasse. 

Eu sei que eles foram intimados a prestar depoimentos como desaparecida. Ela entrou e a delegada falou toda a verdade. Já tirou ela de perto dele. Quando ele entrou, ficou sabendo da denúncia. A única coisa que fizeram foi a medida protetiva. Levaram ele para nossa casa, tirou as coisas e minha mãe ficou na delegacia. 

***
Nisso, a delegada deu o papel da medida protetiva e disse: ‘pronto, pode voltar para casa’. 

E ela voltou para casa. Eu comecei a ficar desesperada e falei ‘minha mãe voltou para casa sozinha e ele está onde?’. Ele estava solto! Ele tem várias queixas de agressões de (da Lei) Maria da Penha a ela, mas ele sempre pagava fiança e saía. 

Comecei a entrar em desespero. 

Comecei a ligar para todo mundo e a única pessoa que passou pela minha cabeça foi pedir ajuda a um amigo para entrar em contato com minha professora (a advogada dela, Maria Cristina Carneiro). Só que ela já tinha se planejado. 

Eva está vivendo com uma responsável legal definida pela Justiça (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Se não fosse por ela (Cristina), não sei o que teria acontecido com minha mãe. Ela que entrou para pedir abrigo, ficou discutindo com a delegada que medida protetiva não protegia ninguém. E a delegada fez o trabalho dela, né? Não tinha para onde levar naquele momento, até porque, na Justiça, tudo demora. 

Ela conseguiu um lugar para minha mãe ficar. Inclusive, ela nem foi direto para o abrigo. Lugares, pessoas. Ela se mobilizou para nos ajudar. Na mesma noite em que ela saiu de lá, todos os vizinhos viram que ele voltou. 

Ele foi até nossa casa. Quebrou todas as medidas protetivas. 

Ele trocou a fechadura da porta e eu não tinha como provar que ele tinha feito aquilo. Na Justiça, só aceita com foto do local, mas a gente não estava em casa. Mas, se minha mãe estivesse em casa, ela teria morrido naquela mesma noite. 

Ele fez todas as coisas que ele não poderia fazer. Na minha medida fala que ele não pode divulgar nada, mas ele estava fazendo isso. Ele foi na minha casa. Quando a gente foi com a polícia lá para pegar as provas, meu guarda-roupa estava todo revirado. 

A casa não tinha mais nenhuma prova. Eu tinha certeza que ia encontrar coisas lá, mas não tinha mais nenhuma prova. Ele já tinha tirado. Ele passou muitos dias soltos, então teve condições de ir e voltar o tempo inteiro. Tem foto dele (indo até a casa) de dia, foto de noite. Todo mundo vendo ele. 

Minha chave nem abria minha casa mais. 

Ele conseguiu desfazer todas as provas. Conseguiu quebrar a bateria do celular dele inteira. Quebrou o celular dele no meio. Quebrou meu guarda-roupa procurando papéis dele, documentos. As malas dele, bolsas dele. 

Enquanto ele estava solto, estava sempre falando com pessoas. Eu não sabia se era boato, se era verdade, mas ele estava perseguindo, estava ameaçando. 

E quem se tornou escondida fomos nós. 

Eu quero Justiça. Não entendi porque demorou tanto, porque as provas iriam me ajudar muito. Se ele tivesse sido preso antes ou se alguém proibisse ele entrar na minha casa, seria muito mais rápido, porque as provas que estavam lá… Ele conseguiu pegar antes de mim. 

E ninguém podia chegar lá e falar: olha, você está quebrando a medida protetiva. Dar voz de prisão. 

A gente esperou muito tempo. Eu espero que a Justiça seja feita com celeridade, mas não só por mim. Isso não acontece só comigo. Estou tendo todo esse apoio, não só de agora. As pessoas lá do fórum, juízes, professores, advogados, todo mundo com muito medo porque a Justiça foi lenta. E eu faço Direito.

Imagine as meninas da periferia? As meninas que não têm condições, que não têm contato e, psicologicamente, não têm tanta força como eu?
Porque eu ainda consigo me expressar. Consigo falar. 

E eu sei como é você sofrer violência psicológica. As pessoas podem perguntar: e por que não falou? Por que não pediu ajuda? Mas eu tenho testemunhas que foram lá depor falando que eu fui na casa delas, que ele invadiu a casa delas, que me viram roxa, machucada. 

A questão não é só a gente não ter força, mas também as pessoas serem inertes àquela situação. As pessoas falam, mas ninguém tem aquela força de ir lá e se arriscar. Então, o que eu quero que as pessoas mudem nesse sentido, em saber que essa lei (Maria da Penha) protege. Se você denunciar, você também é protegido. 

Você tem aquela proteção. 

Quero que ele desça logo para o presídio. Ainda não me sinto segura. Fico achando que ele vai sair a qualquer momento. Eu preciso voltar para a faculdade, para o estágio, mas eu não consigo. Eu tenho medo de andar na rua. Não consigo ter uma vida normal. Eu acordo de madrugada gritando. Acordo empurrando. Eu fico olhando para os lados. 

Minha mãe não consegue olhar para as pessoas. Ela não olha no olho, não consegue conversar direito. Por enquanto, eu só consigo pensar em Justiça. 

Não consigo te dizer: ‘olha, eu vou fazer isso. Vou ser forte de agora em diante’. Eu só penso em continuar a faculdade. Só penso em continuar o estágio, mas não sei até que ponto eu vou estar segura e até que ponto eu vou conseguir voltar. Eu não consigo ter uma presunção de futuro. 

Porque eu nunca tive uma presunção de futuro. Eu nunca tive minha própria vida. Eu nunca saí daquilo, das perseguições. Então, eu não sei como vai ser minha vida. 

Eu nunca pude falar com ninguém. Quem me conhece sabe que eu tinha alguma coisa escondida em mim. Falar parece besteira, mas é uma dádiva. Poder estar onde eu quero estar é uma dádiva. Coisas pequenas estão sendo dádivas. Dormir a noite inteira. Não me preocupar com que roupa eu vou colocar. Me preocupar com a hora que ele vai chegar ou ficar a madrugada inteira olhando pela brecha da minha porta se ele vai passar. 

É muito difícil pensar num futuro livre quando você nunca teve essa liberdade. 

A única coisa que eu queria era paz. Sempre falava isso comigo mesma em minhas orações. Só precisava de paz e mais nada”.

CONTEÚDO DO CORREIO DA BAHIA