Paulo Galvao Filho/Divulgação

Paula mora em outra cidade, mas foi passar a noite de 23 para 24 de junho com a família em Santo Antônio de Jesus. A casa tava toda enfeitada e a família fez muita comida e bebida. O problema é que, além da sua visita, em determinado momento muitos amigos se juntaram à festa. “Iniciamos a noite em mais ou menos oito ou dez pessoas. Mas teve uma hora que chegou a ter entre 15 e 18 pessoas. Amigos que chegavam de máscaras, mas depois tiravam as máscaras. Todos em uma varanda. Nessa hora a gente começou a ficar procupado”, reconhece. Inofensivo para alguns, o tipo de confraternização narrado por Paula é um dos prováveis motivos do crescimento do número de casos de coronavírus em cidades do interior da Bahia com tradição do São João.

“Teve mesa com seis a oito pessoas. Compartilhamos das mesmas comidas, bebidas e objetos”, afirma Paula, que diz ter procurado usar sempre o álcool gel. “Vi aglomerações em outras casas também. Todos sem máscara. A gente sempre acha que ninguém tem o vírus”. O São João no interior é conhecido por três fenômenos de fluxo de pessoas: o primeiro deles é a grande quantidade de gente que se desloca da capital para as “roças”; o segundo é a multidão que se espreme nas praças; e o terceiro, bastante animado, é o trânsito que ocorre de casa em casa para tomar o licor do vizinho, dançar um forró e comer aquele amendoim. Este ano, apenas a aglomeração nas praças foi banida da festa por conta da pandemia do novo coronavírus.

Apesar de todos os esforços das autoridades, relatos ouvidos pelo CORREIO mostram que foi impossível impedir totalmente a chegada de visitantes nas cidades e as confraternizações familiares com música e até fogueira, além de tradições como as guerras de espadas. O resultado se vê agora agora, mais de duas semanas depois, nos boletins epidemiológicos de cidades como Santo Antônio, mas também Senhor do Bonfim, Cruz das Almas, Amargosa e Mucugê, tradicionalmente conhecidas pelas festas. Todas apresentaram alta de casos de covid-19 (ver gráfico). Algumas prefeituras ponderaram que houve aumento do número de testagens e afirmaram ter empreendido todos os esforços para barrar os visitantes e os festejos entre pessoas de casas diferentes, mas depoimentos de moradores, autoridades e da própria polícia mostram que o São João teve influência direta no crescimento.

Em Santo Antônio de Jesus, a 187 km de Salvador, mesmo com a montagem de barreiras sanitárias nas entradas da cidade com apoio da Polícia Militar, o tenente coronel César Pacheco narrou ao CORREIO a existência esse ano de “festividades volumosas e paredões de som com famílias reunidas”. “Fizemos diversas averiguações e as pessoas desligavam o som quando chegávamos”. O coronel admite que muitos filhos da terra ou parentes de moradores saíram da capital para sentir o clima da roça, ainda que o município não tenha realizado festa oficial. “O cara quer curtir o São João no interior por conta da tradição. Para daí fazer uma festa e colocar o som pra tocar não custa nada. Tentamos coibir como pudemos”, afirma o coronel.

Zona rural de SAJ: fim de festa com mais de cem pessoas (Foto: 14 BPM/Divulgação)

A principal ocorrência aconteceu no dia 21 de junho e foi noticiada inicialmente pelo site local Andaia. Mais de cem pessoas se aglomeravam em um forró no bairro da Juerana, na zona rural, a cerca de 5 km do centro da cidade, descumprindo as regras de isolamento, o afastamento social e o toque de recolher das 20h às 5h. “Havia contato total das pessoas, com dança e bebidas. Enviamos quatro viaturas”, diz Pacheco. As pessoas foram abordadas e a festa desfeita, mas ninguém foi preso. Na época, SAJ contabilizava cinco mortes e 253 pessoas infectadas por coronavírus. Hoje são 683 infectados (aumento de 170%) e 15 mortes. A Prefeitura do município soltou uma nota sobre a festa: “a grande maioria das pessoas sequer usava máscaras de proteção. De nada adianta o poder público regulamentar se as pessoas continuam a ignorar os pedidos das autoridades de saúde e o conselho de quem perdeu um ente querido para essa tragédia”.

Mas não foi a única aglomeração. Outros moradores denunciam que houve diversas festas em família e confirmam a entrada irregular na cidade. “Conheço muitas pessoas que vieram passar o São João. Aqui na rua teve muitos fogos, carros de som, famílias fazendo o São João como de costume”, disse uma moradora do Loteamento Benício, próximo do centro. Ela, que prefere não se identificar, afirma que o comércio de Santo Antônio, mesmo fechado, continua funcionando “pelas portinhas”. “Eu fico horrorizada com o fluxo de pessoas nas ruas fazendo compras. Semana passada saí para resolver um problema e não achei lugar para estacionar mesmo com o comércio teoricamente fechado. Quer dizer, o comércio tá funcionando pelas portinhas”, conta.

O secretário municipal de saúde, Leandro Lôbo, lamentou o desrespeito. “Mesmo com as restrições implantadas, ampliação da fiscalização e campanhas educativas, infelizmente houve casos de desrespeito ao decreto e muitas reuniões familiares. Um costume aqui do interior e com certeza isso contribuiu de forma definitiva para o aumento do número de casos”. Após reunião com o governador, SAJ divulgou ações para conter a pandemia. “Ainda antes do São João, no dia 18, nós suspendemos as atividades comerciais. Estamos com toque de recolher em vigor desde 30 de maio. Temos central de testagem, central de monitoramento e nos próximos 10 dias vamos abrir um pronto atendimento exclusivo para pacientes de covid-19”, afirmou o secretário.

Forró às escondidas em Amargosa

Em Amargosa, no Centro-Sul baiano, há muitos relatos de aluguéis de casas na zona rural e usaram comprovantes de residência de familiares para que pudessem ultrapassar as barreira de fiscalização e festejar o São João. “Houve também reuniões às escondidas, inclusive com fogueiras, que estavam proibidas pela prefeitura. Agora estamos sofrendo com as consequências do São João. Em relação às cidades vizinhas, Amargosa estava bastante equilibrada por conta das medidas que foram tomadas desde cedo. Mas agora os casos dispararam”, lamenta a estudante Maria Luisa Maia, que mora no centro da cidade.

Amargosa em 2018 ficou na saudade (Foto: Marco Peixoto/Divulgação)

A prefeitura afirma ter aumentado a equipe de vigilância epidemiológica após o São João e flexibilizou os critérios de testagem. Antes, só era testado apenas quem tivesse contato direto com casos confirmados. O prefeito Júlio Pinheiro (PT) acredita que os novos casos que surgiram têm, sim, relação com a data. “Vislumbrávamos isso por causa da tradição de viajar mesmo sem ter festa”, relata Pinheiro. A prefeitura solicitou a ampliação do efetivo de policiais militares para ajudar no controle de acesso ao município. As barreiras ficaram funcionando 24 horas durante os dias tradicionais. Não teve jeito. No dia 21 de junho, Amargosa contabilizava 23 casos de pessoas infectadas com coronavírus e duas mortes. Na sexta-feira (10), o município já tinha 81 casos e três mortes.

Cruz e as espadas

A cidade que tem as espadas como tradição também teve episódios que reforçam a ideia de que o São João contribuiu para o aumento do número de casos da doença. O sentimento dos moradores é de que todos os esforços das autoridades para controlar o vírus foram por água abaixo após os festejos juninos. A engenheira Daniele Assis, 30 anos, nascida e criada em Cruz, disse que dias antes do São João a família observou que a cidade já estava cheia. “E eu ficava me perguntando: ‘mas como se tem barreira na entrada da cidade?’. Pois bem: os amigos e familiares de alguma maneira ajudaram essas pessoas a terem acesso. E com toda certeza forjaram o comprovante de residência. As pessoas faziam de tudo para enganar as barreiras”.

Daniele observou que a quantidade de fogueiras “diminuiu 95%”, mas isso não impediu que as pessoas se reunissem. “Uma ou outra fogueira, mas as pessoas estavam nas portas de suas casas comemorando. Principalmente em algumas ruas mais afastadas do centro”. Moradores também afirmam que a tradição de tocar espadas se manteve. Muitos espadeiros não respeitaram o isolamento. “Teve espadeiro que tocou espada dentro do seu terreno, nas suas fazendas, mas muitos foram para a rua e saíram em grupo”, afirma uma antiga moradora da cidade, que preferiu não ter o nome divulgado.

No dia 21 de junho, Cruz tinha 73 casos de covid-19. Na sexta-feira (10) eram 205 infectados, um aumento de 280%. De todas as cidades com São João forte, Cruz foi a que mais apresentou crescimento. Antes da festa, o município usou as redes sociais para divulgar a seguinte campanha: “neste São João não tem caminho da roça, fique em casa”. A explosão de casos fez o prefeito Orlandinho Peixoto (PT) iniciar um processo de elaboração de um decreto de lockdown — regime de bloqueio de circulação de pessoas, veículos e serviços — para conter a pandemia de covid-19. O documento deverá ser publicado no Diário Oficial do Município na segunda-feira (13).

“É o momento do lockdown, de medidas mais duras para a gente tentar conseguir diminuir [a contaminação]. Estamos estudando o conceito de lockdown. O genuíno, que surge de um termo em inglês, é basicamente fecha tudo. Estamos estudando modelos de lockdown que fizeram no Brasil”, disse o prefeito. Passado o São João, a prefeitura de Cruz das Almas até alterou a forma de divulgação do boletim epidemiológico, que ficou mais detalhado. Na segunda-feira (6), cerca de 15 dias após a data comemorativa, o informativo diário citou que dos 141 casos existentes até então na cidade, 21 tiveram visitantes como fonte de contaminação.

Vídeos em Bonfim

Da mesma forma, espadas provocaram aglomeração em Senhor do Bonfim, no Centro-Norte da Bahia, onde a prática também é tradição. Uma pequena multidão se reuniu na Rua Costa Pinto, onde tradicionalmente ocorre a guerra de espadas. Mas o locutor e radialista Cleber Vieira não acredita que isso tenha contribuído tanto para o aumento dos casos. “Não houve esse exagero de aglomeração. Deve ter sido umas 20 pessoas. Inclusive os espadeiros tradicionais repudiaram. Sinceramente, não vejo que teve tanto crescimento por causa do São João”, afirma Cleber, que trabalha na cidade.Os vídeos da guerra de espada que circularam pelas redes sociais, porém, mostram muito mais do que 20 pessoas nas ruas. Confira:

Moradores também relataram outras situações que podem ter feito os números dispararem. “Teve muita gente soltando espada, mas não só isso. Vi muita festa, muito forró”, confirma uma moradora da zona rural que pediu anonimato. “Muita gente fez seus forrós pela zona rural, em fazendas e casas. Isso traz uma contaminação”, acredita o agente comunitário de saúde Pedro Carvalho de Sales, 52 anos. Pedro adquiriu covid-19 antes do São João.

“Como eu peguei não sei dizer. Não saí da cidade, mas sou profissional de saúde. Um dia acordei com uma quentura imensa no corpo e com dor de barriga durante sete dias. Muita dor de cabeça e no corpo também. Tomei paracetamol de seis em seis horas”, conta Pedro, preocupado com o aumento do número de casos, mesmo com o comércio tendo sido fechado nas últimas semanas. Apesar do aumento, a prefeitura reabriu os estabelecimentos na segunda-feira. As lojas funcionam das 9h às 15h . “É muita gente. O vírus está se alastrando”, avisa Pedro.

No dia 21 de junho, Senhor do Bonfim registrava 86 casos de coronavírus e uma morte. Nesta sexta-feira (10), eram 175 casos confirmados, um aumento de 173%. O prefeito Carlos Brasileiro (PT), no entanto, atribui o aumento de casos à uma maior testagem da população. Segundo ele, a gestão municipal já fez mais de 3,3 mil testes rápidos desde o fim de abril. Na terça-feira, 78% dos casos eram de profissionais da saúde e 114 já estavam recuperados, garantiu o prefeito. Outros 176 casos de sintomas leves ou assintomáticos estavam em monitoramento.

Mucugê também registrou aumento dos infectados após o São João. Com números absolutos bem menores, é o que mais apresenta aumento percentual: 200%. O número de casos saltou de quatro no dia 21 de junho para 12 no dia 6 de julho. O número se manteve o mesmo nessa sexta-feira (10). O secretário de saúde do município, Igor Teles, explicou que os 12 casos não tem qualquer relação com os festejos. Segundo ele, todos os confirmados após os festejos envolvem apenas duas famílias de pessoas que foram fazer tratamento médico ou cirurgia em Salvador e outras cidades. O secretário disse ainda que a fiscalização apertou o cerco contra o forte apelo popular pelo São João. A rede hoteleira foi toda fechada e barreiras sanitárias foram colocadas nos acessos à cidade.

UPAs da capital receberam 728 pacientes do interior com covid-19 no mês de junho

Números divulgados no início dessa semana pela Prefeitura de Salvador mostram que as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e os Pronto-Atendimentos (PAs) de Salvador têm recebido uma demanda alta de pacientes do interior do estado com covid-19. Segundo nota da prefeitura, isso “pode atrasar a redução da curva de crescimento de pessoas infectadas nos leitos de UTI exclusivos para tratar a doença na capital”. O município reiterou que as unidades mantenham as portas abertas para todos. “No entanto, é preciso que principalmente as cidades vizinhas adotem medidas mais duras para enfrentar a pandemia”.

Nos meses de maio e junho, as UPAs e os PAs receberam 728 pacientes da Região Metropolitana de Salvador (RMS), de outras cidades do interior e até de outros estados. Entre esses pacientes, 329 foram de Lauro de Freitas, 193 de Simões Filho e 51 de Camaçari. Em relação a outros estados, há registros de pacientes de Belo Horizonte (MG), Uberaba (MG), São Paulo (SP), Paulina (SP) e do Rio Grande do Sul. O governador Rui Costa chegou a dizer essa semana que, em conversas com prefeitos, ficou claro que as o comportamento da população no São João teve reflexo no aumento de casos, apesar da divulgação de campanhas que incentivam o isolamento social e combatem as aglomerações.

“O efeito São João, como previmos, é motivo de grande preocupação porque ampliou a atuação do vírus no interior do estado”, escreveu nas suas redes sociais. Antes, em entrevista conjunta com o prefeito ACM Neto (DEM) na terça-feira (7), o governador já havia criticado os que furaram o isolamento.”Muitas pessoas se encontraram nas suas casas, sítios, comunidades, mesmo em família ou com amigos, para fazer algum tipo de confraternização. Em grupo familiares, quase 100% das pessoas foram contaminadas ao ter contato com algum infectado. As taxas neste período pós-São João foram bastante expressivas”, pontuou Rui. Informações do Correio da Bahia