No final do mês passado, algum morador da cidade baiana de Canudos, a 372 km de Salvador, ligou para a polícia local e, de forma anônima, fez a seguinte denúncia: cerca de 200 jumentos que seriam abatidos e depois exportados para a China tinham morrido de fome em uma fazenda do município. E outros 800 animais caminhavam para o mesmo fim.
Para a Polícia Civil da Bahia, porém, uma notícia como essa não era inédita. Meses antes, em Itapetinga, a 562 km da capital, centenas de jumentos também morreram sem ter o que comer ou beber.
Os dois casos chamaram a atenção das autoridades pela grande quantidade de animais mortos e geraram a preocupação de que, no ritmo em que os jumentos estão morrendo – seja por abate, seja em situações como as de Canudos e Itapetinga –, a espécie pode correr risco de extinção no Brasil em alguns anos.
Desde 2016, vem crescendo no Brasil o abate de jumentos. A pele dos animais é enviada à China e, lá, usada para a produção do ejiao, uma substância feita com gelatina do couro da espécie.
Na tradicional medicina chinesa, o ejiao é recomendado para diversos problemas de saúde, como menstruação irregular, anemia, insônia e até impotência sexual.
O abandono dos jumentos
Segundo dados de 2013 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 90% dos quase 900 mil jumentos do Brasil estavam em Estados do Nordeste. Historicamente, os asininos são usados para transporte e trabalhos no campo.
Em meados da década passada, no entanto, o crescimento econômico da região fez com que eles fossem trocados por veículos motorizados, como motocicletas.
O resultado é que a grande maioria foi abandonada pelos donos. Hoje, milhares de jumentos vagam por estradas e rodovias do Nordeste em busca de comida.
O abandono fez aumentarem os acidentes de trânsito em diversos Estados. O Departamento Estadual de Trânsito (Detran) do Ceará, por exemplo, criou um órgão especial para recolher os animais que andavam pelas rodovias.
Só no ano passado, foram recolhidos 4,5 mil jumentos nas estradas cearenses – eles são levados para uma fazenda, onde são tratados e colocados para adoção.
Em 2016, o governo da Bahia tomou uma decisão radical e controvertida: para conter os acidentes de trânsito, o Estado recolheu 300 animais nas ruas e os abateu.
No início da década, chegou-se a cogitar que a carne do jumento fosse usada para a alimentação, como ocorre em alguns países. Segundo especialistas, o projeto não decolou por uma questão cultural: o jumento é considerado um símbolo do Nordeste e a população se recusa a comer sua carne.
Recentemente, um acordo comercial com a China impulsionou as exportações dos animais. Segundo o Ministério da Agricultura, em 2016, o Brasil exportou 24.918 toneladas de cavalos, asininos e muares – o material vai principalmente para países como China e Vietnã. No ano passado, foram 226.432 toneladas, alta de 808% em apenas dois anos.
Pela lei, os frigoríficos precisam de autorização do Ministério da Agricultura para abater jumentos. Segundo a pasta, apenas seis têm essa permissão no país – três deles na Bahia, um em Minas Gerais, um no Rio Grande do Sul e um no Paraná.
Mortes e maus tratos
A advogada Gislane Brandão, coordenadora da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, descreve o cenário encontrado pela polícia e por ONGs de defesa dos animais na fazenda em Canudos. “Havia muitos jumentos mortos, muitas carcaças. Os outros estavam desnutridos, pois ficaram meses sem comer praticamente nada. Era cruel”, conta.
Estima-se que 200 dos cerca de 1.000 animais que estavam na fazenda morreram de inanição. Os outros estavam bastante debilitados. “Não havia condições mínimas de sobrevivência”, conta a promotora Cristina Seixas Graça, coordenadora do centro de apoio às Promotorias de Meio Ambiente da Bahia.
A polícia descobriu que a fazenda onde houve as mortes tinha sido arrendada por chineses. Os animais seriam levados para um frigorífico e, depois, abatidos.
Na semana passada, a ONG Fórum Nacional de Proteção e Defesa de Animal assinou um acordo com a Justiça e o Ministério Público para receber e cuidar dos jumentos que sobreviveram em Canudos. Posteriormente, eles serão colocados para adoção.
A cena na fazenda de Canudos era bastante parecida com a encontrada em Itapetinga, em setembro do ano passado. “A gente achou centenas de jumentos em uma área muito pequena. Eles estavam amontoados, dezenas tinham morrido. Não havia água nem comida para eles”, relata o delegado Roberto Júnior, coordenador regional da Polícia Civil em Itapetinga.
A polícia abriu um inquérito para apurar o caso. “Descobrimos que a fazenda estava arrendada por dois chineses. Eles reuniram os animais para depois abatê-los para a exportação. Nós os denunciamos por maus-tratos”, diz o delegado.
Os dois chineses trabalhavam para a empresa Cuifeng Lin, que foi multada em R$ 40 mil pela Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab) após as mortes.
A Cuifeng Lin tem sede registrada em uma pequena sala de um prédio comercial no Pari, em São Paulo. No local, no entanto, a BBC News Brasil só encontrou funcionários de empresa terceirizada que presta serviços administrativos.
A reportagem ligou para um dos responsáveis pela Cuifeng Lin, mas ele não atendeu às ligações.
Depois do caso de Itapetinga, a Justiça decidiu suspender os abates de jumentos na Bahia, medida que vigora até hoje.
De onde vêm os animais?
A investigação descobriu que os jumentos confinados nas fazendas baianas foram comprados por R$ 150 cada, mas também há casos de alguns adquiridos por R$ 30.
“Os funcionários dessa empresa procuravam moradores da região para comprar os animais”, diz o delegado Júnior.
Segundo o Ministério Público, os jumentos também são recolhidos em estradas e rodovias dos Estados nordestinos e depois levados a fazendas próximas dos frigoríficos autorizados.
Em alguns casos, os asininos fazem viagens de até 12 horas e são transportados ilegalmente sem a Guia de Transporte Animal (GTA), segundo constatou a investigação.
“Essas pessoas recolhem ou compram os animais por preços irrisórios, não dão condições mínimas para eles, como alimentação. E ainda ganham muito dinheiro com esse negócio”, diz a promotora Cristina Seixas Graça.
Os jumentos podem desaparecer?
Uma das preocupações das autoridades e de entidades de defesas dos animais é que o aumento exponencial de abates de jumentos pode exterminar a espécie no país. Segundo o Conselho Regional de Medicina Veterinária da Bahia, os asininos podem desaparecer do Brasil em até cinco anos se a atividade seguir nesse ritmo.
Na decisão que suspendeu o negócio na Bahia, a juiza federal Arali Maciel Duarte escreveu que 44 mil animais foram abatidos entre 2016 e outubro de 2018 em apenas um dos três frigoríficos do Estado com autorização para realizar a tarefa.
“O Brasil não tem cadeia produtiva de jumentos. Ou seja, eles não são criados para o abate, como os bovinos”, diz Elizabeth MacGregor, diretora do Fórum Nacional de Proteção e Defesa de Animal. “Se continuar assim, a espécie será exterminada. O Estado brasileiro não se preocupou em dar tratamento digno para os jumentos, que são um símbolo cultural do Nordeste e do país.”
A promotora Cristina Seixas Graça também critica a forma como o negócio vem sendo conduzido. “Estamos nos tornando apenas uma fonte de exportação sem ter nenhuma grande vantagem econômica por essa atividade que pode acabar com a espécie”, diz.
Em nota, o Ministério da Agricultura afirma que os estabelecimentos devem garantir instrumentos e mecanismos de autocontrole para o bem-estar dos animais. A pasta também diz que equipes do Serviço de Inspeção Federal (SIF) têm fiscalizado regularmente os frigoríficos. (Por Leandro Machado, BBC) Foto: Divulgação