(Reprodução/Jomar Lima)

Em 2020 não teve celebração, cortejo, samba e todas as demais tradições da Festa da Boa Morte, que existe há 200 anos em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, e que, no ano passado, deixou de acontecer pela primeira vez por conta da pandemia. Fenômeno inédito que não deve se repetir tão cedo já que, agora, com a vacinação avançando e a queda dos índices da covid-19 em território baiano, o festejo voltará a acontecer, mesmo que de forma limitada apenas nos dias 14 e 15 de agosto. Flexibilização que vai permitir que a Irmandade da Boa Morte – formada por mulheres negras – volte a comparecer à Igreja depois de precisar ver on-line uma única missa celebrativa em favor de Nossa Senhora da Boa Morte logo quando a chegada delas na cidade completava o seu bicentenário.

Uma celebração, no entanto, que nem de longe lembrará o que era antes da pandemia. Isso porque, em tempos comuns, a festa começava no dia 13 com a missa e só acabava no dia 17 com os festejos e ceias. “Dessa vez, vamos fazer a celebração, mas só teremos duas atividades em dois dias, sendo elas missas que serão transmitidas on-line para o público em geral. O que muda é a presença das irmãs na missa e a realização do cortejo, que também não aconteceu no ano anterior”, explica Jomar Lima, assessor da Irmandade da Boa Morte.

Alegria no retorno

O cortejo citado por Jomar se trata de uma carreata que todo ano conduz as imagens de Nossa Senhora da Boa Morte e da Glória da Casa da Irmandade até a Igreja Matriz em Cachoeira. Tradição que retorna junto com a presença das irmãs na Igreja, o que por si só já enche de alegria o coração de Mãe Zelita, 77 anos, representante da Irmandade. “Menino, a felicidade da gente tá enorme só de recebermos a benção de estarmos vivas e presentes na missa. Isso nos faz sentir abençoadas por Nossa Senhora da Boa Morte e Nossa Senhora da Glória. É uma alegria constante”, destaca ela, que faz parte da Irmandade há 45 anos.

Nilza Prado, 79, é irmã da Boa Morte há 26 anos e também não esconde a felicidade por poder estar celebrando a Festa, mesmo que em apenas dois dias de missa. “Estamos felizes por fazer. Ano passado já não teve, esse ano não poderíamos deixar passar em branco. É uma festa de amor, de confraternização e, principalmente, agradecimento a Nossa Senhora da Boa Morte. Poder estar na celebração é mesmo um presente depois de um ano tão complicado que passamos”, diz.

Ansiosa pelas missas, Nilza ressalta o valor que tem a reunião das irmãs na celebração, já que precisaram ficar longe durante todo esse tempo de pandemia. “Somos uma família e, como família, sentimos falta do contato uma com a outra. É uma diferença grande passar o festejo na companhia de minhas irmãs e foi difícil no ano passado. Porém, as coisas não são como a gente quer, é tudo como Deus quer, temos que respeitar. Então, esse ano voltamos fazendo tudo com muito cuidado”, conta ela, que garante que cada irmã irá respeitar o distanciamento mínimo e que não haverá descuidos quanto ao protocolo.

A falta do festejo

O que haverá, de fato, é a saudade da parte do festejo que se sucede às missas e promove a reunião da comunidade em Cachoeira que chega para ver o samba e comer do caruru e do cozido servidos pelas irmãs, respectivamente, nos dias 16 e 17. “A saudade não é pequena. Vamos sentir falta dos nossos amigos, dos visitantes, do nosso povo que sempre comparece, essa saudade vai ficar. Na parte religiosa e folclórica, não vamos contar com pessoas que a gente sorria, brincava, era aquela alegria profunda”, lamenta Mãe Zelita, que valoriza a importância do envolvimento da comunidade na festa. Festejo que faz falta, principalmente, ao povo negro, que tem conexão direta com a história da Irmandade da Boa Morte.

Magnair Barbosa, historiadora e especialista em história e cultura baiana, explica essa ligação falando do papel de resistência das irmandades negras diante de um sistema colonial e escravocrata. “No que concerne a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, é possível citar compras de alforria, ascensão social da mulher negra, as chamadas “negras do partido alto”, alianças para aluguel de casas e compra de produtos, inclusive religiosos advindos da África, além dos agenciamentos para abertura e principalmente funcionamento de casas de culto afro brasileiro”, lembra a historiadora, citando ações de apoio das irmãs.

Um engajamento que faz da Irmandade um símbolo de luta permanente em meio a dificuldades e um grupo onde a memória da mulher preta aguerrida é demarcada e celebrada. “A Irmandade representa a força da mulher negra para criar e recriar a vida diante dos mais diversos conflitos. A Irmandade e a própria Festa da Boa Morte representam, nesse sentido, a luta, a perseverança e a fé travada pelo povo negro na Bahia”, ressalta Magnair, que também lembra que acontecia na festa o tradicional samba de roda do Recôncavo Baiano, obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.

Foco do turismo

E, como patrimônio cultural que é, a Festa da Boa Morte faz de Cachoeira uma cidade procurada por turistas nacionais e internacionais durante o período de celebração em um maior volume e ao longo de todo o ano em menor quantidade. Cadu Morais, chefe do departamento de Turismo de Cachoeira, conta como a ausência da festa prejudicou o setor por lá. “Vem gente durante o ano todo procurando a Irmandade. No período de festa, temos uma estimativa de 2 a 3 mil turistas circulando por aqui e a ocupação hoteleira é total no período. Com a pandemia, isso foi zerado. Um baque que não temos um número preciso, mas podemos afirmar com tranquilidade que foi grande para o município”, afirma.

Morais ainda destaca o valor da festa e da Irmandade na atração de turistas para o município, colocando o Candomblé como principal responsável por isso. “Elas têm um memorial, uma capela que fica ativa e aberta para visitação o ano inteiro. Há um público grande que visita Cachoeira por ter uma ligação direta com o Candomblé, onde está uma das principais vertentes do turismo religioso, que é uma das marcas de Cachoeira”, conclui. (Correio da Bahia)