Sem desfile, sem fanfarras, sem protestos, sem palanque. O dia em que é celebrado a Independência do Brasil na Bahia não é nem mais feriado, ao menos em 2020. O tradicional, combativo e resistente 2 de Julho acontece pela primeira vez sem o principal personagem durante todos esses 197 anos de história: o povo.

Por causa da pandemia do novo coronavírus, as comemorações de uma das festas mais tradicionais na Bahia não serão realizadas. Não no formato habitual, que seria com festa e caminhada pelas ruas de Salvador. No lugar, uma programação online extensa foi criada para evitar aglomerações.

professora doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas, Wlamyra Albuquerque — Foto: Arquivo pessoal

Porém, é a partir da perspectiva popular que o 2 de Julho deve ser pensado, como defende a professora doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas, Wlamyra Albuquerque. “Posso ser uma historiadora iconoclasta, mas poderíamos dividir as luzes que se colocam nos heróis tradicionais para esses outros heróis anônimos que carregam as bandeiras dos direitos todos os anos”.

Doutora Wlamyra é estudiosa da festa do 2 de julho no começo da República. A origem da festa é a celebração do fim do domínio português no Brasil e desde então sempre carrega as tensões e as disputas do período, da cena da época.

“É uma festa que eu acho que define bem o que significa a disputa por projetos nacionais. Ao mesmo tempo cívica, popular e religiosa. Única festa que carrega essa marca patriótica, religiosa, negra, afro-brasileira, e uma festa que é também uma festa popular”.

São muitos os personagens clássicos das batalhas que levaram os portugueses a deixarem o Brasil e, enfim, o país se tornar “livre”. Maria Quitéria, Lord Cochrane, Joana Angélica, General Labatut, Maria Felipa, assim como o povo negro, caboclos, os vaqueiros da cidade de Pedrão, e grupos indígenas – principalmente da Ilha de Itaparica, que também foi palco importante da luta. Mas são as figuras populares marcantes que perpetuam a festa há quase 200 anos.

“Nas ruas têm muito mais riqueza do que nesse panteão fundador da festa, dos personagens clássicos. A ideia para fazer uma abordagem original é centrar nesses sujeitos. Sempre me emociono quando vejo a foto de Cosme de Farias, franzino, com uma faixa enorme ‘Abaixo o analfabetismo’ na festa do 2 de julho. Militância quase solitária”.

Cosme de Farias, à esquerda, segurando a faixa 'Abaixo o Analfabetismo' — Foto: Foto: Fundação Pedro Calmon [disponibilizada no Portal 2 de Julho]

Para relembrar e também apresentar aos que não conhecem, Cosme de Farias, nas palavras da historiadora no prefácio do livro Lama & Sangue [de Cosme de Farias, com edição de 2018 organizada por Bruno Rodrigues de Lima], era defensor da educação popular e se tornou conhecido na Bahia das primeiras décadas do século XX pelo espírito combativo e disposição para advogar por réus pobres.

“A gente precisa falar mais sobre Cosme de Farias. Se fala pouco sobre ele. Ele está afastado no tempo, é do começo do século XX, mas é central na demanda por direitos. Deveríamos ser mais gratos também às comunidades de candomblé, comunidades indígenas, que levantaram bandeiras por direitos”, disse a historiadora.

Além da importância de Cosme de Farias na tradição do 2 de julho, Wlamyra também destaca nomes como Manuel Quirino e Teodoro Sampaio [que foi presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia] como responsáveis por carregar bandeiras em prol de direitos, principalmente nesse momento em que é preciso repensar a República.

“Manuel Quirino, historiador que escreveu bastante sobre o 2 de julho. Abolicionista, negro, artista, artífice, estudava no Liceu de Artes e Ofício, foi vereador de Salvador. Eles que foram sustentando a festa ao longo do século”.

Para além do 19 de abril

Imagem da Cabocla no desfile em homenagem ao 2 de julho em 2019 — Foto: Alan Oliveira/G1
Foto: Alan Oliveira/G1

Doutora Wlamyra propõe uma reflexão a respeito das comunidades indígenas que são fundamentais para o 2 de Julho. Segundo ela, a presença indígena, principalmente da Ilha de Itaparica, ainda têm pouca visibilidade. Aparecem como uma massa, um conjunto anônimo.

“Mas como que eles aprendem? E aquela festa é representativa pra ele? Como começou? Esse silêncio, esse desconhecimento não é um acidente. Tem a ver com o próprio lugar que eles ocupam no projeto nacional. Até mesmo as comunidades de candomblé aparecem mais, por causa do movimento negro”.

Segundo Wlamyra, as comunidades dos terreiros participam desde o primeiro ano da festa. Cabocla e caboclo nascem pelo sincretismo, da religiosidade africana e desfilam na rua como se fossem santos em cima de um andor. Eles encarnam esse sincretismo e o candomblé garante essa sacralidade aos caboclos. A doutora em História Social ainda conta um fato curioso sobre um boicote à presença da cabocla e do cabloco nos festejos.

“Quando é inaugurado o monumento ao 2 de Julho, no Campo Grande [centro de Salvador], eles [as autoridades] queriam que os caboclos fossem secundários na festa. Batucada, tambores, duas imagens indígenas pareciam bárbara demais para um projeto da República”, conta.

“Eles trancaram os caboclos no barracão para que eles não fossem às ruas, para que a festa fosse só concentrada no Campo Grande, mas populares arrombaram e levaram os caboclos para as ruas. Isso aconteceu nos primeiros anos da República, como parte de um projeto de construção cívica onde essa dimensão popular e religiosa fosse deixada de fora”.

Foto: Alan Oliveira/G1

Em outro momento, no centenário da festa, em 1923, Wlamyra conta que os governos municipal e estadual da época tinham muito medo do que a imprensa nacional diria sobre a manifestação do 2 de Julho e também tentaram desestimular o desfile dos caboclos, sem sucesso.

“Ela [a festa] resiste porque tem pessoas que levantam a bandeira como os moradores da Lapinha, os grupos de samba. Temos o sentido de pertencimento nacional encarnados nesses caboclos, para aspirar por liberdade, para celebrar isso”.

Na Bahia, particularmente em Salvador, o 2 de Julho é até mais importante do que o 7 de setembro por carregar uma complexidade e singularidade que mexem com o imaginário popular. Neste ano, sem o samba e o concurso de fachadas na Lapinha, a cerveja no percurso sob sol forte, ou o termômetro de popularidade dos políticos em pré-campanha eleitoral, a festa vai ficar na memória.

“Estamos tendo muitas faltas [por causa da pandemia]. Individualmente e coletivamente. Essa vai ser uma grande falta coletiva no processo civilizatório que o 2 de julho faz todos os anos. E, de qualquer maneira, vai inaugurar outras formas de ocupar esse projeto nacional”, conclui professora Wlamyra.

Para acessar essa memória coletiva, a doutora Wlamyra Albuquerque vai lançar um portal com documentos e fotografias e notícias sobre o 2 de Julho no próximo dia 5 de julho. O projeto vem sendo construído há dois anos em parceria com Jocélio Teles dos Santos, doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. “A ideia é cobrir essa falta”, conclui. E, para celebrar e cantar em casa, relembre o Hino ao Dois de Julho, que se tornou o hino oficial da Bahia em 2010:

Nasce o sol ao 2 de Julho, brilha mais que no primeiro!
É sinal que neste dia
Até o sol, até o sol é brasileiro
Nunca mais, nunca mais o despotismo
Regerá, regerá nossas ações!
Com tiranos não combinam
Brasileiros, brasileiros corações!
Salve Oh! Rei das campinas
De Cabrito e Pirajá!
Nossa pátria, hoje livre,
Dos tiranos, dos tiranos não será!
Nunca mais, nunca mais o despotismo
Regerá, regerá nossas ações!
Com tiranos não combinam
Brasileiros, brasileiros corações!
Cresce! Oh! Filho de minh’alma
Para a Pátria defender!
O Brasil já tem jurado
Independência, independência ou morrer!
Nunca mais, nunca mais o despotismo
Regerá, regerá nossas ações!
Com tiranos não combinam
Brasileiros, brasileiros corações!
Com tiranos não combinam
Brasileiros, brasileiros corações! (bis) G1

Baianos celebram a independência do Brasil na Bahia no no Largo da Lapinha, em Salvador - Foto de 2015 — Foto: Mateus Pereira/GOVBA
Foto: Mateus Pereira/GOVBA

Concurso de fachadas volta a ser realizado no 2 de julho - Foto de 2018 — Foto: Marisa Viana/Divulgação

Ruas do Pelourinho lotadas durante o desfile em 2016 — Foto: Juliana Almirante/G1
Foto: Juliana Almirante/G1