O olhar tão perdido quanto vazio e desesperado de Yan Barros na foto em que ele aparece ao lado do tio durante as sessões de tortura é inverso à pessoa que o garoto, morador do bairro de Fazenda Coutos, no Subúrbio Ferroviário, era no dia-a-dia: sonhava em ser youtuber e fazer com que seus vídeos viralizassem para conseguir dinheiro e dar uma casa bacana para a mãe. E tinha carisma, muito carisma. Andava sorrindo, vaidoso e sempre fazia graça das coisas – por mais sofrida que fosse a vida.

Quem descreve tudo isso é sua mãe, Elaine Costa Silva, dona de casa de 37 anos. Yan era o segundo de quatro filhos e morava há pouco mais de um ano com o tio, Bruno, a outra vítima do caso bárbaro. “Ele ficou de maior e foi morar com o tio, que tinha voltado pra cá depois de se separar. Estavam em uma casa da avó paterna de Yan, mãe de Bruno”.

Por sua vez, Bruno Barros da Silva, 29, era o filho caçula de dona Dionésia Pereira de Barros, 58 anos, atualmente desempregada. O CORREIO caminhou entre os bairros de Vista Alegre e Fazenda Coutos para conversar com as duas mães. Gerações de mulheres diferentes, mas que convivem com a mesma dor e agonia de perder filhos brutalmente assassinados e com os corpos encontrados no porta-malas de um carro na Polêmica, após terem sido flagrados furtando na loja do supermercado Atakarejo, em Amaralina, na última segunda-feira (26).

O supermercado não registrou queixa na polícia sobre o delito cometido por Yan e Bruno. A família diz que as vítimas foram entregues a traficantes do Nordeste, responsáveis pelas mortes e por desovar os corpos. Uma distância de 5,6 km separa o supermercado da rua onde foram encontrados.

Jeito de Menino

Yan era muito apegado a Bruno. Por isso a decisão de morar junto com o tio. Na pequena casa de cinco cômodos, havia muito espaço livre. Além da dupla, o irmão mais velho de Yan, Harison, também vivia no imóvel. Os irmãos eram como carne e unha: viviam brigando e se amavam. No intervalo entre um arraca-rabo e outro, se gravavam cantando e tocando alguma coisa.

Yan tocava bateria, arte que aprendeu como aluno do Projeto Axé – ONG que trabalha com educação de crianças e adolescentes no Pelourinho. Cursava o 9º ano num projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Atualmente, estava sem celular e isso dificultava a tentativa de ser um youtuber. Gravava um vídeo ou outro quando pegava o celular da mãe e às vezes esquecia do próprio projeto para jogar Free Fire.

“No mês passado a gente foi pra Ilha e ele descarregou minha bateria todinha jogando Free Fire. Ele virava a noite jogando. Antes tinha um computador, que queimou”, disse a mãe. Adorava comer e era apaixonado por hambúrguer. “No dia do aniversário dele [no último dia 4 de abril, Yan completou 19 anos] ele fez contagem regressiva e ficou me dizendo ‘mainha, eu vou comer um hambúrguer em meu aniversário'”, relembra a mãe enquanto mostrava um vídeo de Yan numa casa na Ilha junto a familiares aguardando dar 0h para comemorar o aniversário.

Com o olho cheio d’água, sua mãe mostrava vídeos e fotos do filho para a nossa equipe. “Eu nunca mais vou ver meu filho sorrir”, disse antes de desabar em lágrimas, lamentando que sequer teve a oportunidade de deixar o caixão do filho aberto no velório. O sepultamento aconteceu na Ordem Terceira do Carmo, na Baixa de Quintas, graças a doações feita por vizinhos, amigos e conhecidos que se mobilizaram para arcar com os custos. Sem isso, a família não faz ideia de como faria para enterrar seus entes de uma forma digna.

“O que fizeram com ele não se pode fazer nem com bicho. Meu filho era vaidoso, arrancaram os dentes de meu filho. A boca ficou toda inchada de porrada que deram nele. Eu sei que ele estava desesperado porque consigo sentir olhando para essas imagens”, disse Elaine.

Elaine Costa mostra as bermudas que eram do filho, assassinado após ser entregue a traficantes em Amaralina (Foto: Nara Gentil/CORREIO)

Comida
O gosto de Yan por comer pode ter uma explicação: a escassez. Durante a entrevista, Elaine repetiu uma frase que repetia insistentemente para o filho: “a gente pode ter dificuldade, mas não vamos morrer de fome”. Desempregada, sobrevive vendendo material de limpeza que ela mesma faz na sua casa, um barraco bem humilde, com dois cômodos, onde vive com as duas filhas mais novas e seu netinho, um bebê de pouco mais de um ano.

A avó do garoto sempre mandava quentinhas para Yan e Bruno na casa que moravam, a pouco mais de 200m do imóvel que ela vive. Dona Dionésia alugou um outro lugar para deixar o filho morando na casa que é dela. “Ele era doido por calabresa. Comia de tudo quanto é jeito. Frita com farofa, no pão. Tinha vez que eu separava um feijão pra ele e só colocava calabresa. Eu sempre mandava comida pra ele”, diz.

No celular, Elaine guarda boas memórias do seu segundo filho (Nara Gentil/CORREIO)

Yan também estava desempregado. Frequentemente, mandava mensagem para a mãe, pelo celular do irmão mais velho, dizendo que estava com fome. Além de ser bom de boca, o garoto era vaidoso: sempre andava de gel no cabelo e tentava ser o mais estiloso possível. Colocou aparelho nos dentes sozinho. Meses depois, começou a vender amendoim torrado no ônibus para bancar o tratamento profissional. Dizia que as meninas gostavam dele com aparelho e ficava bonito.

Frequentemente, trocava de roupas com o irmão para sempre ter uma peça nova. Harison deixou guardada duas das bermudas. O primogênito se recusou a ir ao enterro porque não quis guardar na memória nenhuma lembrança do irmão sem vida. “Essas roupas são memórias que ele tem o irmão com vida, feliz. Por isso disse que vai guardar pra sempre”, disse Elaine. Bruno tinha passagens pela polícia por pequenos furtos. Yan nunca teve nenhuma ocorrência policial. Dionésia diz que os dois estavam errados por pegar as carnes, mas que ninguém tem o direito de tirar a vida do outro por conta de um erro.

“Que eu saiba, não existe pena de morte no Brasil. Mas condenaram meu filho e meu neto à morte. Meu neto era uma pessoa boa, carinhosa, e fizeram todo tipo de maldade com eles. Eu não consigo dormir, estou andando pela rua parecendo que estou louca porque não consigo raciocinar direito. Eu quero justiça, preciso de justiça. Outras pessoas já apareceram dizendo que foram maltratadas nesse mercado. Esse Atakarejo é o mercado da morte. Não precisava fazer isso que fizeram”, disse Dionésia.

Uma vizinha de Bruno afirmou que ele pegou as carnes para vender. E iria reverter o dinheiro para comprar comida. Ela descreveu o rapaz como um homem reservado, às vezes até misterioso – algo bem diferente do vaidoso e expansivo Yan. Bruno estava desempregado e recebeu várias portas fechadas por conta dos seus antecedentes criminais. Também não conseguiu o auxílio emergencial do governo federal e por isso pedia dinheiro emprestado para comer e pagar algumas contas em casa.

O último aniversário

Comemorar cada ano de vida era um momento aguardado por Yan todo ano. “Ele se sentia uma estrela, gostava de fazer aniversário porque dizia que era o dia dele ser especial”, disse Elaine. Seu último aniversário foi comemorado na Ilha de Itaparica. Dias antes de viajar, fez um bico com reciclagem e levantou um dinheiro para se presentear: duas garrafas de vodka e outra de energético.

Na véspera, bebeu bastante. Brincou um bocado. Disse para a mãe que queria dormir logo para acordar na hora do aniversário, mas foi em vão. Ficou aceso até dar meia-noite. “Ele dizia que era aniversário dele, mas não dei parabéns na hora. Ficava dizendo ‘oxe, você ainda não nasceu. Só nasceu 12h15, essa é a hora de seu aniversário'”, lembrou Elaine com um sorriso no rosto.

Última foto que Elaine tirou do filho, Yan, com vida foi durante viagem feita pela família em abril 

Segundo Elaine, a família tentava se juntar sempre que possível em datas comemorativas, assim como o dia das mães – que será no próximo domingo (9). A sensação que fica desde já é o vazio. Uma sensação de que poderia ser diferente e que a data poderia ser feliz como foi o último Natal, em que a família se juntou na casa do pai de Elaine, avô materno de Yan.

Procurada, a Polícia Civil afirmou em nota que o Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoa (DHPP) analisa imagens do circuito de câmeras de segurança do supermercado e já ouviu funcionários do estabelecimento e familiares das vítimas de homicídio Bruno Barros da Silva, de 29 anos e Ian Barros da Silva, 19, além de outras testemunhas. Segundo a Polícia, as investigações estão avançadas, já com indicativo de autoria. Equipes do departamento realizam diligências para a coleta de mais elementos que subsidiem a elucidação do crime e a prisão dos autores. (Correio da Bahia)