Considerado um marco no combate à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha completa nesta quarta-feira, 7, a maioridade. Ao longo de seus 18 anos, foram diversos avanços e conquistas.

Sancionada em 7 de agosto de 2006, ela passou a fazer a diferença, de fato, apenas seis anos depois, após o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal (STF), como explica a desembargadora Nágila Brito, Presidente da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA).

“Apesar de ser de 2006, ela [Lei Maria da Penha] só passou a vigorar mesmo em 2012, quando o Supremo julgou a ação declaratória de constitucionalidade número 19, dizendo que os dispositivos da Lei Maria da Penha são constitucionais, e também a ADIM 4424, para dar a interpretação correta. Com essas duas ações, que são constitucionais, todo juiz teve que aplicar a Lei Maria da Penha, mesmo ela sendo uma lei afirmativa, protecionista para a mulher”, disse em entrevista exclusiva ao Portal A TARDE.

A juíza ainda salienta que, antes da Maria da Penha, as penas aplicadas muitas vezes prejudicavam e causavam sofrimento a todo o núcleo familiar.

“De 2006 até 2012, aplicava-se a lei dos juizados de pequenas causas, a lei 9099, que dava como pena uma cesta básica. Agora, você imagine o quanto essa mulher sofria, porque, de onde saiu o pagamento da cesta básica? Da economia familiar. Então, ela sofria porque havia sido agredida, e porque estava diminuindo o alimento para seus filhos. Então, virou um círculo vicioso. Eu pago e bato, eu pago e bato. Quando ela foi julgada constitucional, a lei Maria da Penha passou a se aplicar com mais proteção e de prevenção”, salientou.

Nágila Brito destacou ainda que “prevenção” é a palavra-chave da Lei Maria da Penha. “A Lei Maria da Penha é essencialmente preventiva. Por isso que ela traz no coração da Lei as medidas protetivas”, acrescentou.

Segundo os dados do Tribunal de Justiça da Bahia, só este ano (até o dia 25 de julho), foram 15.487 medidas protetivas solicitadas em todo o estado. Na capital, foram 4.114, das quais 3.182 foram concedidas.

A agilidade para se conseguir uma medida protetiva também é um dos diferenciais da Lei Maria da Penha. Hoje, é possível conseguir o documento em um prazo entre três a quatro dias, sem a necessidade de abertura de um inquérito policial.

Conforme dados da Coordenadoria da Mulher do TJ-BA, a medida protetiva mais requisitada é a de “proibição de aproximar da vítima e seus familiares, estabelecendo distância mínima de 100 a 500 metros”, seguida por “proibição de manter contato com a vítima e seus familiares, por qualquer meio de comunicação”.

Este foi o caso de Ananda Ferrão*, de 33 anos. Em um relacionamento abusivo desde os 15 anos, ela demorou para identificar os sinais até os episódios se tornarem mais evidentes, culminando na separação, que aconteceu 16 anos depois.

“Eu não me conscientizava do quanto aquela relação era doentia e minava o meu emocional. Vivenciei violência psicológica, sexual e patrimonial”, contou.

O ciúme em demasia e a possessividade se tornaram cada vez mais frequentes na vida do casal, que gerou uma filha. “Foram diversos episódios de fúria. Ele esmurrava paredes, quebrava objetos, chegou a destruir o meu celular novo, espancou o nosso cachorro na frente da nossa filha, ameaçou abandoná-lo, matá-lo, ouvi xingamentos, gritos, fui traída e desrespeitada de muitas formas”, completou.

Mesmo vivendo um relacionamento extraconjugal, o companheiro de Ananda não aceitava o fim do casamento e passou a ameaçá-la. Por meio da Lei Maria da Penha, ela conseguiu uma medida protetiva, o que, segundo ela, foi essencial.

“Mesmo exposto, esse homem não aceitou o fim da relação e passou a me ameaçar, demonstrando o quanto era possessivo e controlador. Também me importunou sexualmente diversas vezes, eu vivia fugindo, com medo. Só consegui um pouco de paz, quando decidi impor limites e fui à Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Camaçari, denunciá-lo e mostrar provas das ameaças sofridas e da importunação sexual. Pedi uma Medida Protetiva e me foi concedida em pouco tempo”, explicou.

De acordo com ela, a medida vem funcionando e sendo cumprida. “Inclusive, a Ronda Maria da Penha, atuante em Camaçari, é bem atenta e já veio aqui monitorar a minha situação. Eu posso acioná-la sempre que me sentir em risco diante da possibilidade de aproximação do meu ex. A visita à nossa filha é intermediada por uma pessoa da minha confiança, que vem buscá-la e assim a distância de segurança fica mantida”.

Evolução: da Ronda para o Batalhão

Filha da Operação Ronda Maria da Penha, o Batalhão de Policiamento de Proteção à Mulher (BPPM) nasceu para ampliar as ações de proteção e integrar a rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher no Estado da Bahia.

Uma das coordenadoras do projeto Ronda Maria da Penha, a Major Paula Queirós, subcomandante do BPPM de Lauro de Freitas, criado em 2014, explica como as ações afirmativas evoluíram até se transformar no Batalhão.

“Ronda Maria da Penha, que era uma operação com a musculatura ainda menor, foi elevada à condição de Batalhão. Hoje, não é uma operação, é uma unidade da Polícia Militar. A gente continua fazendo, como a Ronda Maria da Penha, os atendimentos em toda a capital e Lauro de Freitas, fora a questão de orientar doutrinariamente as outras 22 rondas do interior”, explica.

A sede fica em Lauro de Freitas, mas a abrangência da atuação é também em Salvador.

A major ainda destaca que, entre os tipos de ocorrências mais frequentes, os casos de violência psicológica, moral e física são os mais frequentes. Além destes, ainda existem a violência sexual e a violência patrimonial. “As pessoas pouco relatam a violência sexual e patrimonial, ou por vergonha, ou falta de identificação”, destaca.

Segundo ela, o atendimento da Polícia Militar em relação à ocorrência é muito maior nos bairros mais periféricos, porém ela tem uma explicação para isso. “Nos bairros onde as pessoas têm um poder aquisitivo maior, a procura é menor por questões culturais. Porque tem a vergonha de se expor diante dos vizinhos. A vergonha do julgamento, e muitas vezes elas procuram outros meios”.

Para denunciar qualquer caso de violência doméstica, basta ligar para 190. A denúncia pode ser feita por qualquer pessoa.

Casa da Mulher Brasileira

Criada para comportar vários setores de apoio e combate à violência contra a mulher, a Casa da Mulher Brasileira, em Salvador, fica localizada na Avenida Tancredo Neves, ao lado do Hospital Sarah, e comporta setores da Prefeitura de Salvador, Governo do Estado e o Governo Federal.

“A Casa da Mulher Brasileira é algo que começou lá atrás, em 2015, quando Dilma era presidente. Ela elaborou um projeto que era Mulher Viver Sem Violência. Aqui na Bahia, seria a primeira casa a ser instalada. Aí teve alguns problemas e não pôde ser”, salienta a desembargadora Nágila Brito.

Ela explica como funciona a iniciativa criada para a proteção da mulher. “A ideia é uma coisa bastante inteligente, para todos os serviços funcionarem ali. Ela entra pela delegacia, pela DEAM, e conta a sua história. Ela vai ser ouvida, provavelmente, por um assistente social, uma psicóloga, pelo psicossocial. Depois, a delegada pode fazer oitiva, pedir a medida protetiva, e aí a medida protetiva vai diretamente para o judiciário”, continuou a doutora.

Na capital baiana, são quatro varas funcionando e a expectativa é que a quinta seja criada e instalada dentro do complexo. “A nossa ideia era que só cuidasse das medidas protetivas, porque aí entrou nessa ‘porta’, que lá também vai estar o Ministério Público, vai estar a Defensoria Pública, tanto do réu como dela, porque a mulher tem direito. Isso é uma coisa muito importante da lei: ela tem direito”.

Ao procurar a Casa da Mulher Brasileira, a vítima é acompanhada por um advogado desde a fase pré-processual. “Ela precisa. E olha como precisa. Porque além da agressão, podem estar ali subjacentes diversas causas cíveis. Como, por exemplo, ela precisar de um divórcio”, diz a desembargadora.

Já a Defensora Pública de Direitos Humanos e do Núcleo de Defesa das Mulheres (Nudem) da DPE/BA, Izabel Martins, destaca a “integração” entre os órgãos. “O objetivo da Casa da Mulher Brasileira é justamente essa integração. O governo federal constrói o equipamento e aí o município fornece alguns serviços, o Estado fornece outros serviços junto com as instituições, como o Tribunal de Justiça, Polícia Militar, Polícia Civil”.

Defensoria Pública

Izabel Martins também explicou o papel da Defensoria Pública na Casa da Mulher Brasileira.

“A mulher que está em situação de violência e quer conseguir o divórcio mais rápido, até a própria ação de guarda, de alimentos… A gente tem como objetivo aqui no NUDEM fazer o atendimento integral dessa mulher em situação de violência, para que ela não precise passar por vários órgãos, por vários setores dentro da própria Defensoria. Ela precisa de uma medida protetiva, mas também precisa definir a questão da guarda, das visitas, dos alimentos. A gente tenta fazer todo esse atendimento aqui unificado”, salientou.

Casos de violência doméstica e solicitação para medida protetiva também são atendidos pelo órgão. No entanto, ela destaca que o atendimento se restringe a Salvador. “Isso não quer dizer que em outras comarcas essa mulher fique desassistida do serviço. Mas aí, nesse caso, vai ser o defensor de cada cidade que vai ter que atender”.

Órfãos do feminicídio

Para a desembargadora Nágila Brito, o feminicídio é uma “tragédia familiar”, já que, para além do crime em si, há um outro problema grave: os filhos dos casais. “As crianças perdem não só a sua mãe, como também o pai. Praticamente todos os casos são de condenações a mais de 20 anos de prisão”, reflete Brito.

Um caso de grande repercussão na Bahia é um perfeito exemplo da criação de um desses “órfãos do feminicídio”. O brutal assassinato da cantora gospel Sara Freitas deixou uma filha de 11 anos desamparada. Além de perder sua mãe, a adolescente ainda viu seu pai, mandante do crime, ser preso.

Para a desembargadora, o episódio pode trazer traumas irreparáveis, além de ser um solo fértil para a criação de novas vítimas e agressores.

“Ela não vai ter uma infância acompanhada pelos pais, aí vem o trauma. E aquelas pessoas podem ser os agressores do futuro ou pessoas tão traumatizadas que praticam automutilações. Então, eu estou fazendo essa primeira constatação da necessidade da Lei Maria da Penha e que ela proteja diferentemente homens e mulheres, porque o homem não é igual à mulher. Nós somos diferentes mesmo”, completou.

Mulher trans também é protegida pela Lei Maria da Penha

No primeiro semestre de 2022, uma decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) também deve ser aplicada aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero.

“Como nós abraçamos e protegemos todas as mulheres, as mulheres trans também estão sob a proteção da Lei Maria da Penha”, explicou a desembargadora Nájila.

Mulheres podem ser agressoras

Ainda que o mais comum seja o homem ser o agressor, as mulheres também podem ser alvos da Lei Maria da Penha.

“Hoje a gente tem a ideia de que sempre o agressor seria um homem, mas, na verdade, a lei Maria da Penha pode enquadrar uma mulher também. Pode ser qualquer pessoa”.

Ela explica também que o parágrafo único do artigo 5º da lei diz que a denúncia pode ocorrer em uma relação homoafetiva. E isso é importante, porque hoje a gente observa que tem muitos casos desses também, muitas agressões. Pode ser uma mãe também [que agrida um filho ou filha]”, desmitifica. A Tarde