Há quatro anos, o Brasil viveu uma epidemia do zika vírus, que é transmitida pelo mosquito da dengue. O número de pessoas contaminadas aumentou 25% na comparação com 2018. Desse total, cerca de 286 gestantes testaram positivo para a doença.

Em Pernambuco, o vírus deixou sequelas em mais de 400 crianças desde 2015, metade delas mora na região metropolitana de Recife, a outra metade, nos municípios do interior.

A gerente regional da Secretaria de Saúde do estado, Renata Remigo, afirma que é justamente nas áreas rurais que quase três de cada 10 crianças identificadas com a síndrome moram.

“Antigamente existia uma história que o mosquito não chegava na zona rural. Hoje o mosquito não tem esse limite geográfico”, explica Renata.

No município de Buíque, no agreste pernambucano, mais da metade da população é rural e quase todos são considerados pobres ou extremamente pobres, de acordo com o último Censo (2010).

É nesta cidade a 300 km de Recife que mora a dona de casa Roberta da Silva. Ela cuida do pequeno José, de 3 anos, e faz praticamente tudo com a criança no colo.

O garoto ainda não anda e não fala. A mãe explica que o motivo foi a zika que ela contraiu durante a gravidez.

“Eu estava com uns 4 meses dele, eu peguei a zika só que eu pensei que era dengue. Eu não sabia que ia causar a microcefalia nele. Foi um choque pra mim, é o primeiro filho”, recorda Roberta.

Situação parecida vive Claudiane Nascimento, que mora em São José da Tapera, no sertão de Alagoas. Ela é mãe da Izabela, que também nasceu com microcefalia, que é quando a cabeça da criança é menor que o padrão. Tudo foi descoberto aos poucos, ao longo do primeiro ano de vida.

De cada 10 pessoas que pegam o zika vírus, oito não sentem absolutamente nada. Foi assim com a Claudiane durante a gravidez. Ela sabia da existência da doença, mas nunca desconfiou que estaria contaminada pelo vírus.

O marido dela, o produtor rural José Renilson Nascimento, conta que não houve qualquer avaliação sobre uma possível contaminação com o vírus da zika após o parto da filha. “Médico nenhum fez avaliação na hora de sair. Só falaram ‘pode ir, está liberado’ e já deu alta.”

José Renilson trabalha com a criação de gado para conseguir manter a renda da família, mas a falta de chuvas nos últimos anos dificultou a entrada de dinheiro para o sustento da esposa e das duas filhas.

Para conseguir cuidar da Izabela, a família recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é um salário mínimo (R$ 998) pago pelo governo federal a quem precisa de assistência. O dinheiro ajuda na compra de remédios e deslocamentos para médicos e fisioterapeutas.

Dificuldades das mães

No município de Santana do Ipanema, em Alagoas, Cryslaine Maria da Silva é mãe do menino Iago, de 3 anos. Ela conta que contraiu o vírus da zika na roça bem no começo da gravidez e sabe das dificuldades que a doença trouxe para o filho, mas ainda nutre pequenas esperanças.

“O que eu mais quero é que ele pelo menos se sente. Eu sei que ele não vai fazer tudo que uma criança normal faz”, diz Cryslaine. A mãe e o filho voltaram recentemente de uma jornada de três meses em Campina Grande, a 400 km de casa.

A criança fez um tratamento intensivo de fisioterapia em um instituto filantrópico que trata crianças vítimas da zika. A doença mudou a rotina da Cryslaine. “Eu parei de trabalhar para cuidar dele. Às vezes, eu passeava, hoje já não passeio mais. Também não quero deixar ele com ninguém porque tenho medo de alguém judiar dele.”

As mães são figuras centrais da epidemia de zika no nordeste. A ONG Human Rights Watch acompanha vítimas da doença desde 2015 conta as dificuldades enfrentadas pelas mulheres.

“Uma mulher tem uma preocupação com o seu próprio filho e com a sobrevivência delas. Porque essas mulheres falam: ‘um dia eu vou [morrer] e o que acontece com o meu filho?’”, afirma a diretora da ONG, Maria Laura Canineu.
“Se centraliza na mulher todas as obrigações em relação a família”, prossegue Maria Laura. A dona de casa Edvânia da Silva tem a Eva, que foi diagnosticada com microcefalia ao nascer, ela ainda não consegue falar.
Mesmo enfrentando a doença, a família não recebe o BPC do governo. Resta para a mãe sustentar os nove filhos com R$ 466 por mês, o que dá R$ 51 por pessoa.

O pouco dinheiro dá para conseguir alimentar a família com dificuldades e, quando não dá, os vizinhos tentam ajudar. A Edvânia intercala um sorriso tímido e muita tristeza. Parece fazer o que pode, mas não consegue muito.

Transporte precário

No caso da fisioterapia, fundamental para crianças nesta situação, Claudiane lutou muito para ter acesso. Ela só conseguiu quando a filha tinha mais de um anos de idade. Mas valeu à pena.”Quando ela chegou aqui [na fisioterapia], ela era muito molinha. Hoje ela já tá mais firme”, diz a mãe.

O trajeto para a sessão semanal é longo, dura cerca de duas horas e custa mais de R$ 10 para chegar ao município vizinho de Santana do Ipanema. Lá, a Associação dos Amigos e Pais de Pessoas Especiais (Aappe), atende pacientes de toda a região. Só a zika levou 32 crianças para lá.

A fisioterapeuta Denia Barbosa explica que o aumento de crianças na associação foi um susto. “Não esperávamos que ia ter a quantidade de crianças que apareceu pra gente aqui. Era um caso novo pra todo mundo”, afirma.

Voltando para Pernambuco, a Roberta e o filho José saem de Buíque fazem uma viagem de 20 km rumo a Arcoverde para fazer o tratamento em uma das unidade de terapia completas do estado, de acordo com o Ministério da Saúde.

O José chegou ao centro de tratamento com 4 meses de idade e pegou todas as atividades nesse momento mais importante, que é chamado de “estimulação precoce”. E hoje ele continua vindo três vezes por semana.

A fisioterapeuta ocupacional Iane Pacheco acompanha o menino desde o início do tratamento e afirma que começar cedo foi fundamental.

“Quanto mais cedo a criança chega pra terapia, mais chance ela tem de evoluir. A gente chama de período crítico. Ele é importante demais pro desenvolvimento da criança”, lembra Iane.

Segundo o Ministério da Saúde, 65% das crianças com síndrome congênita da zika não tiveram acesso à estimulação precoce. Mais de 36% não passam por atendimentos especializados e 39% não têm acesso as consultas de rotina na primeira infância.

A coordenadora regional da Secretaria de Saúde de Pernambuco, Laura Patriota, conta que a dificuldade no estado foi espalhar o sistema de saúde especializado no interior.

“Em 2015, nós tínhamos apenas duas [unidades de] referência que ficavam centralizadas aqui na capital. Hoje a gente tem 35 serviços no estado capacitados, treinados, com equipes preparadas para atender essas crianças”.

Mas levar todas as crianças ao atendimento é um desafio em vários estados. O transporte é uma responsabilidade dos municípios. A falta dele faz com que crianças só consigam chegar para a fisioterapia uma vez por semana.

“Eles teriam que ter pelo menos dois atendimentos por semana, dando continuidade em casa porque são pacientes de alta complexidade. A maioria das crianças não vai receber alta”, explica Denia. É um atendimento permanente. A gente precisa dar continuidade para que ele [tratamento] não venha a regredir”, continua a fisioterapeuta.

As prefeituras de São José da Tapera, em Alagoas, e de Buíque, em Pernambuco, afirmam que vão melhorar a condição de transporte para que Claudiane e Roberta levem os filhos até a fisioterapia.

Prevenção

A ciência ainda não explicou com certeza por que a zika ataca alguns bebês e outros não. A infectologista Mardjane Lemos é uma estudiosa da doença afirma que a doença é um perigo constante.

“O vírus está presente e deve ser lembrado por toda mulher que pretende engravidar, que pensa em engravidar. Pelo menos 50% das mulheres aqui em Alagoas ainda não tiveram contato com o zika vírus. São 50% de mulheres que ainda podem se infectar e ter bebes com alterações pela microcefalia”, diz Mardjane.

Cleane Barros Alves, de 34 anos, está com muita expectativa para o nascimento do filho, que ainda ela não sabe se será menino ou menina. Grávida de seis meses, ela fez do repelente contra o mosquito um ritual diário.

Depois da epidemia de 2015, Alagoas passou a distribuir o produto gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, todas as mulheres fazem teste para a doença no início do pré-natal.

Mosquito resistente e perigoso

O Aedes egypti, mosquito transmissor da doença, não escolhe quem vai picar, mas é justamente nas áreas mais carentes que ele encontra moradia fácil. O motivo é que são lugares que não têm saneamento básico, o lixo está espalhado pela rua e onde tem água parada, muitas vezes, é porque ela está armazenada para beber e cozinhar.

A seca pode enganar. Não tem chuva, os riachos também estão absolutamente secos, ninguém sente o mosquito picar. Só que o Aedes egypti é muito resistente. As larvas do mosquito permanecem na natureza por meses, mesmo com sol forte. Só que daí vem a primeira chuva, começou um ciclo. Tudo de novo.

“Uma epidemia pode acontecer a qualquer momento no Brasil porque as mudanças estruturais em comunidades mais carentes e vulneráveis que eram necessárias não foram feitas: acesso à água potável, saneamento básico”, reforça Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. G1