Necessidade de passar por hemodiálise de quatro horas de duração, três vezes por semana. Dores no corpo causadas pela doença renal e uma alimentação limitada em que até os líquidos que ingere por dia devem somar no máximo 500 ml. Essa é a realidade da aposentada Rosana Perez, 61 anos, que tem Nefrite Lúpica e esperou por um rim por cinco anos em São Paulo e, há dez meses, migrou para a fila pelo órgão na Bahia.

Ela é uma das 2.227 pessoas que aguardam órgãos para transplante, de acordo com a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). O rim é o órgão que tem mais demanda, com 1.282 pessoas na espera. Para doação de córneas, 931 aguardam. Outros órgãos, como pulmão, coração e pâncreas, e tecidos, como ossos e pele, também podem ser doados, mas possuem uma fila menor no estado.

No caso do rim, a demanda é grande não só na Bahia como em todo Brasil. E quem espera precisa lutar para se manter firme em uma situação que Rosana diz que é desanimadora pelo baixo número de pessoas que doam. Ela, no entanto, mantém a esperança para seguir em frente pensando no que terá assim que seu órgão chegar.

“Vou poder viver como uma pessoa normal. Eu sonho em poder comer o que eu quiser, beber água sem medir os milímetros num copo. Parece pouco, besteira, mas não é. É liberdade mesmo. Poder viajar, por exemplo. Hoje, não posso, porque tenho a diálise toda terça, quinta e sábado, e até dias extras se eu não seguir a dieta de alimentação e líquidos à risca. Eu sonho em ser livre”, desabafa.

Conta não fecha

Para dar essa liberdade a Rosana e a tantos outros baianos que esperam por órgãos, a quantidade de doadores deveria acompanhar a demanda. Até por isso, existe a Campanha Setembro Verde, que é realizada todos anos para marcar o Dia Nacional da Doação de Órgãos em 27 de setembro e fazer com que o número de doadores esteja no mesmo nível do número de quem precisa de transplante.

No entanto, Carolina Melo, coordenadora da Central Estadual de Transplantes da Bahia, afirma que isso não tem acontecido nos últimos anos. “A demanda vem sempre em crescimento, infelizmente. Junto com a expectativa de vida que tem aumentado, a fila tem ido pelo mesmo caminho. O que é um problema, já que as doações, apesar de apresentarem um crescimento, não conseguem acompanhar o número de pessoas que precisam dos órgãos”, explica Carolina.

E a pandemia impactou nos registros. Em 2019, 111 pessoas doaram múltiplos órgãos no estado. Em 2020, esse número caiu para 85 e, neste ano, até agosto chegou apenas a 65. Situação que atrasa a possibilidade de pessoas como Jaqueline Ferreira, 21, que viu sua doença renal evoluir em 2020 e precisou entrar na fila por um rim em maio deste ano. Sem o transplante, ela faz diálise peritoneal, tratamento feito com um filtro que, através de um catéter, realiza a função do rim. Só que esse filtro, que tem dois litros, precisa de trocas constantes.

“Preciso trocar quatro vezes por dia. Preciso sempre estar em casa para fazer, o que é cansativo e me limita. Estou afastada do trabalho porque preciso de lugar adequado para fazer a troca e na empresa que estou, não tem. E, se eu fizer isso em um lugar errado, posso pegar uma infecção, o que é muito arriscado”, fala ela, que trabalha como auxiliar administrativo e sonha em poder voltar ao emprego e se ver livre para viajar e sair sem ter que seguir uma rotina exaustiva em casa.

Doação é a chave

Jaqueline se enche de esperança para superar o problema toda vez que seu telefone toca. Isso porque a espera por um rim é definida pela compatibilidade genética e não ordem de inscrição na fila, como acontece no caso das córneas. No caso do fígado, a ordem é definida pela gravidade do paciente.

Outro motivo para a esperança de Jaqueline é o fato de que ter um doador é mais do que meio caminho andado para ter uma vida sem tantas limitações, como explica Ricardo Mattoso, médico nefrologista do Hospital Ana Nery, que ressalta que problemas em procedimentos em transplantes são raros.

“Hoje, o risco de complicações é muito pequeno. Mesmo em caso de rejeição, como pode acontecer no transplante renal, conseguimos tratar a maioria dos casos. No geral, a incidência de problemas nesses procedimentos é muito pequena e o benefício dado pelo transplante para os pacientes é muito superior”, garante.

Por isso, Mattoso faz questão de salientar a urgência das pessoas tomarem conhecimento de quanto a doação pode ser definitiva para a vida de quem está na fila. “A gente precisa conscientizar as pessoas porque, a partir do momento que elas passarem a doar, seja para rim, fígado, coração ou outros, o transplante, que é o melhor tratamento, vai oferecer qualidade de vida para mais pessoas que hoje aguardam. E isso só acontece quando conectamos doadores com quem está na fila”, pontua.

Carolina Melo declara que os esforços para que as pessoas tomem consciência do valor da doação são prioridade e destaca ainda que é preciso que, ao se tornar um doador, o cidadão precisa saber também que é fundamental informar seus familiares da sua decisão. “A grande maioria das famílias que escutam a pessoa falar, em vida, sobre a vontade dela de ser um doador, respeita isso. Eles têm muito a questão de realizar o último desejo. Então, é essencial conversar sobre isso e deixar claro que vai doar porque eles que vão encaminhar isto”, conta a coordenadora, que ressalta que o ato de deixar na identidade a informação que é um doador não serve como autorização desde 2001.

Quem saiu da fila

Quem garante que seus familiares entendam o seu desejo de ser um doador salva muitas vidas como a de Patrícia Santos, 40, que, em 2018, sentiu um mal estar e descobriu que seu fígado tinha parado de funcionar. Ela fez hemodiálise por um ano e sofreu por passar mal com frequência. Quando decidiu entrar na fila, levou 13 dias para achar um doador compatível, o que mudou tudo para ela.

“Tem um ano e nove meses que estou transplantada. Minha vida mudou, ainda tomo medicamentos porque é preciso, mas é tudo muito melhor. Tinha um medo danado porque passava mal e não sabia se ia morrer. Hoje, tenho liberdade, vivo sem medo e voltei a viajar, que é uma coisa que eu amo e não podia fazer antes”, comemora ela.

Para a psicóloga Verena Martins, 33, o sentimento é parecido. Aos 19 anos, ela foi diagnosticada com Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) e teve uma nefrite que foi parando sua função renal. Fez tratamento com remédios, mas, mesmo assim, aos 24 anos, perdeu toda função renal, o que a obrigou a fazer hemodiálise e diálise peritoneal. Ela se inscreveu na fila em São Paulo e, após dois anos, conseguiu um doador compatível, o que a deu uma nova vida, como a própria relata.

“Após o transplante, renasci. Estava adaptada com a vida de diálise mas havia limitações e depois do transplante, é uma vida nova. Voltei a dançar, fazer atividade física, trabalhar e fazer valer esse gesto de amor. Hoje sou mãe, tenho um bebê de 1 mês e sigo a vida agradecendo sempre ao meu doador, que eu não conheço, mas salvou não só a minha vida como permitiu o nascimento de outra”, diz a psicóloga, que também é doadora.

Outra que nasceu de novo foi Irlana Gusmão, 29, que, quando tinha 20 anos, descobriu que só um de seus rins funcionava e, depois de fazer tratamento por um tempo, acabou o interrompendo. Por isso, no início de 2019, seus rins pararam. A partir dali, ela fez dois anos e quatro meses de hemodiálise, sem se inscrever na fila pelo transplante. Depois de muita insistência de médicos e da família, ela entrou na fila no começo do ano e saiu em maio.

“Foi o dia que salvou a minha vida. Eu poderia ter falecido, mas não aconteceu. Sou muito grata. Agora, tô bem, me adaptando ao rim e deixando ele se adaptar ao meu corpo. No entanto, já voltei a ter uma alimentação menos restrita, que não se limita só a frutas. Tô caminhando aos poucos, mas já é uma vitória imensa”, celebra ela.

Como ser um doador?

Se tornar um doador é simples. É necessário apenas ser maior de 18 anos, ter condições adequadas de saúde e passar por uma avaliação médica. Não há um registro em banco de doadores ou qualquer coisa do tipo para garantir a doação. Quem quiser fazê-la precisa conversar com a sua família e manifestar a sua vontade de doar, pois só os familiares poderão autorizar após o falecimento do doador. No Brasil, não há como garantir a vontade do doador por documentos ou declarações, mas, quando a família tem conhecimento de que a pessoa quer doar, esse desejo é respeitado.

Quem não pode doar?

  • Quem tem doenças degenerativas crônicas ou tumores malignos;
  • Portadores de doenças infectocontagiosas, como soropositivos ao HIV, hepatites B e C, Doença de Chagas, entre outras;
  • Pacientes em coma ou que tenham sepse ou insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas (IMOS). (Correio da Bahia)