Foto: Divulgação/Gov/Camila Souza

Esse texto vai começar de uma forma diferente. Não era 2 de julho e o ano de 1823 já se fazia muito distante. Não havia guerra ou luta por independência, pelo menos da forma literal. Era 20 de maio de 1998. O cenário era o plenário da Câmara dos Deputados, a quase 1.500 km de Pirajá, em Salvador. Lá, mulheres e homens bem vestidos e engravatados decidiam que um dos primeiros locais que os visitantes têm acesso ao conhecer a cultura baiana não se chamaria mais Aeroporto 2 de Julho.

Ele deixaria de homenagear a verdadeira guerra de independência do país e passaria a agraciar um desses donos das decisões, que havia falecido há pouco tempo. Tornou-se então Aeroporto Deputado Luís Eduardo Magalhães. Mas, mais do que isso, comprovou que, longe das ruas e do povo baiano, os 17 meses de guerra sangrenta pela independência não recebem o merecido reconhecimento.

Sem valor

Apesar de ser decisivo para o Brasil que conhecemos hoje, o 2 de Julho sequer é um feriado ou data comemorada nacionalmente. No aeroporto de Salvador, nem nome e nem referência alguma à guerra da Independência na Bahia – há, porém, um busto e um mosaico do rosto do deputado Luís Eduardo Magalhães -. Na Bahia, dos 69 municípios com nomes de políticos, intelectuais, santos e toda infinidade de pessoas com feitos marcantes, nenhum é em homenagem aos heróis e mártires da batalha baiana. Eles, por sinal, só foram inscritos no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria em 2018, 196 anos depois.

Em Salvador, pelo menos oito dos heróis da batalha são homenageados com seus nomes em ruas, avenidas, praças e travessas distribuídas pela cidade. O que, na verdade, pode não significar essa valorização toda, já que algo semelhante ocorre a mais de 1.600 km de distância, em Ipanema, no Rio de Janeiro, onde cinco figuras importantes da luta na Bahia nomeiam ruas há mais de 100 anos. Só agora a capital baiana vai ampliar a vantagem com a inauguração de um memorial em homenagem à data. Com investimento da prefeitura, o espaço vai ficar dentro do Pavilhão 2 de Julho, na Lapinha, mas só será lançado após a restauração do imóvel.

Independência ou guerra

É o 7 de Setembro que se sobrepõe. É ele que é feriado nacional, que tem uma rua ou avenida em cada capital do país, que tem museus espalhados pelo Brasil e que é ensinado nas escolas como o marco mais importante para a história brasileira. Não que seja uma disputa de datas, mas a verdade é que foi no 2 de Julho que a independência foi conquistada, à custa de muito sangue.

No 7 de Setembro não houve nem independência nem morte. Após o grito de Dom Pedro I nas margens do riacho Ipiranga, os portugueses ainda permaneciam no Brasil. Foi a Bahia que os expulsou. Até então, o plano deles era dominar o território baiano para se fortalecer ali e então atacar o Rio de Janeiro acabando com qualquer possibilidade de um Brasil independente. Ou, na pior das hipóteses, dividir o país: continuar controlando o Norte e o Nordeste e deixar o Sul e Sudeste independentes. As batalhas do 2 de Julho frustraram os planos portugueses. É o jornalista e escritor Laurentino Gomes que explica a história. E ele é taxativo: sem a guerra baiana, o próprio 7 de Setembro seria um marco fracassado.

“Foi fundamental a participação da Bahia na guerra da Independência. Hoje, olhando para trás, o 7 de Setembro é uma data muito simbólica, até porque ela envolve legitimar Dom Pedro I como imperador, a dinastia de Bragança, a continuação da monarquia portuguesa no Brasil com Dom Pedro. Mas a data mais importante para a Independência do Brasil é o 2 de julho, que acabou ficando em segundo plano”, avaliou o historiador, em entrevista ao Metro1.

Personagens inconvenientes

Apesar de sua importância, a guerra em território baiano não chega nem perto de ser tão valorizada quanto o grito de “independência ou morte” de Dom Pedro I. Para Laurentino Gomes, a explicação disso é uma mistura de preconceito contra as regiões distantes do eixo Rio de Janeiro-São Paulo com a necessidade de se criar uma narrativa conveniente ao poder daquela época.

“Uma parte disso é o preconceito, mas, do outro lado, é um esforço muito grande para construir uma narrativa histórica que legitime o Império Brasileiro. Era preciso, do ponto de vista da elite que começou a governar o país depois da independência, promover o príncipe Dom Pedro à condição de herói nacional. E aí essa jornada que ele faz a Minas Gerais, o Dia do Fico, o grito no Ipiranga vão se consolidando como cenas muito fortes para legitimar a monarquia brasileira”, explicou o escritor.

Assim como na decisão de mudança do nome do aeroporto de Salvador, fazia sentido deixar o 2 de Julho sob a sombra dos donos das decisões. Afinal, na guerra baiana pela independência, eles não estavam presentes segurando espadas ou canetas. Os heróis eram escravos, sertanejos e anônimos do povo baiano. Claro, sob o comando das tropas organizadas por José Bonifácio e pelo próprio Dom Pedro I, mas definitivamente sem o glamour monárquico desenhado na icônica pintura de Independência ou Morte, inventada – diga-se de passagem – pelo artista Pedro Américo.

Sequestro da narrativa

Duzentos anos de valor renegado acumulam também outros episódios de manipulação na narrativa da ruptura entre Brasil e Portugal. A historiadora e professora universitária Lilia Schwarcz defende que as posteriores celebrações desse marco – como os 100 e os 150 anos da Independência – também tiveram papel fundamental para que o 2 de Julho se esvaísse da memória do país.

“A cada celebração, mesmo em 1822, em 1922 e depois em 1972, existiam vários sequestros [da narrativa da Independência]. Começa no Rio de Janeiro, porque foi lá que ela primeiro foi festejada. Depois vem São Paulo, destacando a cena do 7 de Setembro às margens do Ipiranga e tentando achar uma vocação paulista para a independência. Teve até uma competição entre Rio e São Paulo, mas a ideia era que só por lá, no eixo Sul, a independência se resolvia. Nós, porém, sabemos da importância do 2 de julho. Sabemos que existiram muitos processos, inclusive violentos, que acabam com essa lenda de Independência pacífica, sem conflitos, muito principesca”, explicou a historiadora em entrevista à Rádio Metropole.

Ainda sob as sombras

Mais de 20 anos depois da mudança do nome, o 2 de Julho permanece também sob a sombra do Aeroporto Deputado Luís Eduardo Magalhães e daqueles que decidem. Naquele 20 de maio de 1998, o projeto para o novo nome foi aprovado no chamado voto de lideranças. Os líderes de cada partido foram chamados no plenário e anunciaram como suas bancadas se posicionavam. Dessa forma, houve unanimidade mesmo com resistência de alguns parlamentares. Depois o texto seguiu para o Senado, onde também foi aprovado com concordância de todos. Quarenta e cinco dias depois da morte do deputado, o projeto era sancionado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Deputado federal pelo PSDB na época, Domingos Leonelli foi um dos poucos a contestar a proposta. Ele lembra que, junto com os colegas Walter Pinheiro e Luiz Alberto, ambos do PT, foi o único a não assinar o requerimento que pedia urgência para a votação. O projeto era de autoria do então deputado federal Aroldo Cedraz (na época PFL), hoje ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). Ele mesmo foi à casa do pai de Luís Eduardo, o senador Antonio Carlos Magalhães, oferecer a proposta como homenagem.

“Em uma primeira investida, o próprio ACM achou exagero, usou a expressão ‘fora de escala’ para definir, mas depois decidiu que, como já tinham feito, era importante que todos concordassem. Foram lá reclamar da minha discordância e eu passei a ser ainda mais odiado pelo carlismo”, contou.

Leonelli, que já foi também secretário de Turismo na primeira gestão de Jaques Wagner (PT), não tem dúvidas de que a mudança do nome do aeroporto com tamanha facilidade e rapidez é mais um dos símbolos do processo de desvalorização do 2 de Julho. Na última semana, no entanto, um novo projeto, de autoria dos deputados Joseildo Ramos (PT) e Lídice da Mata (PSB), foi apresentado na Câmara com a intenção de revogar a lei sancionada há 20 anos. Pedindo reparo histórico, o texto reconhece os serviços prestados por Luís Eduardo Magalhães, mas questiona como convencer o restante do país sobre a importância do 2 de Julho se o principal equipamento federal do estado teve o nome alterado para homenagear uma pessoa em detrimento da luta coletiva.

Procurada pelo Jornal Metropole, a Vinci Airports informou que reconhece a importância da data e a existência de projetos que pedem a mudança do nome do aeroporto. A empresa, contudo, reforçou que, na posição apenas de administradora do equipamento, não tem gerência em decisões como essa. Metro1