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“Ele me privou de tudo, de minha própria vida. Eu só podia viver o que ele queria que eu vivesse. Eu não podia usar biquíni, ir à praia, ir para festas, encontrar meus amigos de infância. Até encontros de família, ele dizia para eu ir o mínimo possível. Eu não tinha vida fora da Fundação”. O depoimento é da pedagoga Tatiana Badaró, uma das 14 mulheres que denunciou formalmente – por abusos sexuais e psicológicos – o líder espiritual baiano Jair Tércio Cunha Costa, 63 anos, um dos criadores da Fundação Organização Científica de Estudos Materiais, Naturais e Espirituais (Ocidemnte) e ex-grão-mestre da Grande Loja Maçônica da Bahia (Gleb). Após seu depoimento em  redes sociais, Tatiana recebeu mais de 200 relatos de mulheres que também teriam sido abusadas pelo líder. A defesa de  Jair Tércio, porém, nega as acusações (leia mais abaixo).

Além da “lavagem cerebral” – como ela define – que durou de 2002 a 2014, Tatiana acusa Jair Tércio de abusá-la sexualmente por cinco anos. A maioria aconteceu em uma das casas do líder religioso, no corredor da Vitória, em Salvador. Já outras, no próprio carro dele. A primeira vez foi quando Tatiana tinha 21 anos, quando Tércio pediu ajuda dela para preparar o material de uma de suas palestras no apartamento dele. “Ele disse que eu precisava da energia dele, que ele precisava equilibrar meus chakras” conta. Era sob essa justificativa que os abusos teriam se mantido regularmente, durante um ano, todas às quarta-feiras.

Outras vezes, Jair Tércio teria “justificado” o estupro com outro argumento: a pedagoga teria um problema no ovário, e, por isso, ele teria que colocar o sêmen dentro dela. Em outras supostas agressões, ele muda mais uma vez o discurso, como relata a vítima: “Enquanto ser iluminado, ele dizia que a matéria o limitava e ele precisava descarregar essa energia, que só eu podia suportar”. Porém, uma coisa se repete em todos eles. “Sempre no final dos abusos, ele me fazia dizer que nada daquilo era material, que era um processo de cura, um ritual sagrado”, relata Tatiana.

Porém, os supostos “rituais sagrados” nunca fizeram bem a Tatiana. “Eu me sentia muito mal, completamente sozinha e vomitava depois dos abusos. Me sentia mal também por questionar ele, porque ele era tido como um Deus, como uma pessoa iluminada, que não erra. Me sentia culpada por me sentir violentada”, confidencia a vítima. “Eu não consegui acreditar que aquilo era sagrado. Mas ele dizia que eu não tinha evolução espiritual para compreender”, completa Tatiana.

Como começou

Foi no final de 2001 que Tatiana teve o primeiro contato com Jair Tércio, por meio do então namorado, que já frequentava as reuniões semanais da Fundação Ocidemnte. “Desde esse momento, o Jair dizia que eu precisava me espiritualizar”, conta Tatiana. Quando ela engravidou, aos 16 anos, Tércio disse que a condição para que o namorado dela – que o líder considerava como filho – assumisse a criança, era ela também entrar para a Fundação.

“Se eu não fizesse parte da organização, ele dizia que minha filha ia crescer sem pai e que eu teria uma vida fadada ao sofrimento. Eu tinha 16 anos, estava grávida, confusa, e aceitei. Aceitei porque além de ser uma promessa de apoio, era também um ambiente que eu reconhecia como religioso. E quando você vai em busca de um líder, você vai com as defesas baixas”, explica Tatiana, que lembrou inclusive da data que começou a fazer parte da Ocidemnte: 5 de dezembro de 2003.

Assim que ela aceitou o “convite”, precisou se afastar de seu vínculo de amigos. “Ele mandou eu apagar minha rede social, que na época era o Orkut, trocar o numero de celular e mudar meu e-mail, para que ninguém conseguisse entrar em contato comigo. Mandou até eu me afastar de minha família, porque eu tinha que viver pela obra divina”, relata Tatiana.

A partir daí, Tatiana entrou para um grupo de estudos de ciências humanas, que se reunia aos sábados pela tarde. Era uma reunião só de mulheres, com cerca de 20 integrantes fixas, além das itinerantes. Apesar de ser um grupo, ninguém conversava entre si e elas recebiam orientações individualizadas de Tércio. “Ele era uma figura que não aparecia sempre, porque nem todo mundo podia ter acesso. Ele me ligava, dava orientações. Dizia que o que foi dito pra mim eu não podia contar para ninguém, porque as outras sentiriam ciúmes. Ele cria uma lógica de ninguém confiar em ninguém, dizendo que as outras não são confiáveis e que você está na frente, que está se espiritualizando mais rápido. ‘Não se abra com ela’, ele dizia”, revela Tatiana.

Segundo a pedagoga, os abusos também se estenderam à sua filha. “Ele mandava recado através do pai, por mim e outras lideranças. Quando minha filha tinha cinco anos de idade, ele disse que ela ia crescer bonita e gostosa e tinha que aprender a se proteger para não ser promíscua igual a mim” conta. Tatiane ainda diz que Tércio orientava a filha a chamá-lo de avó, o que a criança rejeitava. “Minha filha nunca gostou dele, por ele ser a representação da repressão que ela sofria”.

Após anos “sob o domínio” da Fundação e da figura religiosa de Jair Tércio, Tatiana finalmente decide romper com os dois em 2014, após ver conversas no celular dele com outras mulheres. “Percebi que não era eu que estava confusa, que era ele o criminosa e o abusador. Ao mesmo tempo que senti repulsa, porque vi que ele tinha manipulado várias pessoas, eu senti um grande alívio, porque percebi que não estava louca. Eu tive a comprovação”, diz Tatiana. Segundo ela, as idades das vítimas eram desde menores de idade, de 12, 13 anos, até mulheres bem mais velhas que ela.

Perseguições e a fuga

Porém, Tatiana não conseguiu se ver livre de Jair Tércio, pois foi a partir daí que começou a receber constantes ameaças e perseguições. Ela recebia fotos e ligações dele de números privados. “Quando eu fazia doutorado na UFBA, começou a surgir foto minha. A gente nunca conseguiu localizar, mas era alguém que estava próximo a mim presencialmente”, conta Tatiana. “Ele chegou a me ligar de números privados: ‘Tá confusa, menininha? O que tá acontecendo com sua cabeça? Venha para minha casa que minha energia vai te ajudar”, narra Tatiana. “Ele dizia que longe dele eu não teria vida”, completa.

Ela chegou inclusive a se mudar para Florianópolis, em Santa Catarina, no Sul do país, para ficar longe da influência do dele. E sim, ela buscou ajuda. Durante os últimos cinco anos, ela procurou três delegacias – duas em Salvador e uma em Florianópolis – mas não conseguiu nem registrar a queixa por “não ter prova suficiente” para abrir um boletim de ocorrência.

Em junho deste ano, as perseguições chegaram ao pico, pois ela percebeu que seu celular estava grampeado. Foi aí que ela tomou a iniciativa de denunciar por meios extrajudiciais, procurando ONGs e associações. Ela mandou 400 e-mails em 24 horas, para organizações nacionais e internacionais que trabalham tanto com violência contra a mulher, quanto com abuso em ambiente religioso. Quem a acolheu foi o Projeto Justiceiras, do Instituto Justiça de Saia, que é uma iniciativa virtual de São Paulo, criada na pandemia, para atender e orientar mulheres vítimas de violência doméstica que reúne 3.500 voluntárias, entre advogadas, psicólogas e assistentes sociais.

Em seguida, as acusações foram encaminhadas para a Ouvidoria das Mulheres, órgão do Conselho Nacional do Ministério Público e o caso está hoje sendo investigado pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA), através do Grupo de Atuação em Defesa das Mulheres (Gedem). Todas as vítimas já deram seu testemunho. O MP não quis comentar o caso pois está em fase de “procedimentos investigatórios” e o processo corre em segredo de Justiça para preservar o testemunho de novas vítimas. O caso foi revelado pela primeira vez à imprensa pela CNN Brasil, no último domingo (2), pela divulgação de mensagens de Whatsapp em que mulheres relatam terem sido vítimas de Jair Tércio Costa. No mesmo dia, o Fantástico veiculou o relato de uma das vítimas. Desde então, o fato ganhou repercussão nacional.

Outra acusação

O CORREIO também entrou em contato com outra vítima abusada por Jair Tércio durante o período em que estava envolvida com a Fundação Ocidemnte. Ela pediu para não ser identificada por medo de sofrer perseguição do líder espiritual, assim como as outras mulheres que entraram com a denúncia ao Ministério Público que preferiram manter o anonimato. Ela começou a frequentar um grupo de estudo da Fundação em 1999, através do então marido, que já acompanhava as reuniões. “Ele se aproximava das mulheres com outras falas e nem todas conseguiram se desvencilhar dele”, conta a vítima sobre a atuação de Jair Tércio. “A lavagem cerebral da Fundação começa no abuso psicológico mas vai além. Você fica preso à Fundação e se sente responsável por ajudar na obra” relata.

A vítima chegou a ser abusada sexualmente em 2006, também na casa de Jair Tércio. “Foi um estranhamento muito grande porque ele era meu líder, meu mestre e aí eu comecei a olhar as relações de maneira diferente”, conta. A vítima disse que não revelou o fato a ninguém, por medo e por achar que iam acusá-la de ter causado o abuso. “Comecei a ser olhada como desobediente, que não era leal e que não aceitava a doutrina”, relembra. Aos poucos, ela disse que foi se afastando, com muita dificuldade, dos eventos e dos frequentadores da Fundação e há quatro  não tem mais contato com a organização.

Relações consensuais 

O CORREIO entrou em contato com o advogado Fabiano Pimentel que defende Jair Tércio no caso, mas este não quis dar entrevista. “Ele não vai falar porque está muito abalado. Não quer se manifestar”, explicou o defensor. Por meio de nota, Pimentel respondeu que as relações foram todas consensuais. “Os fatos narrados não condizem com a conduta do Sr. Jair Tércio Cunha Costa, que afirma jamais ter agido com violência física ou psicológica com qualquer pessoa, muito menos em contexto sexual. Todas as relações que teve, em toda a sua vida, foram consentidas e marcadas por carinho e afeto”, afirmou.

A defesa também alegou que “o Sr.Jair Tércio nunca se valeu de sua posição para lograr vantagens espúrias, principalmente em âmbito sexual. Pessoas que convivem com ele e o conhecem de perto atestam que ele não usaria de nenhuma forma de violência ou ardil para obter qualquer tipo de benefício sexual, e que sua vida é pautada na divulgação e propagação do bem e do autoconhecimento, sendo isso incompatível com o teor das acusações”. O advogado diz ainda que Tércio ainda não foi intimado a comparecer a nenhum interrogatório, mas se colocou à disposição das autoridades para esclarecimentos “por acreditar que todos os fatos serão elucidados no curso do processo”.

Já a Fundação Ocidemnte, onde Jair Tércio atuou por 33 anos, esclareceu, por meio de nota, que “não é, e nunca foi, uma organização religiosa”, e sim “uma organização científica de caráter educativo, sem fins lucrativos, que tem como missão educar cidadãos e auxiliá-los em sua formação integral e humanística”. Ela também diz que “não existe nenhuma atividade que possa ser considerada como um ritual de cura ou doutrinação, no âmbito da Fundação”. O trabalho visa estimular “o desenvolvimento humano, através de processos de ensino-aprendizagem-sentimento, pesquisas e extensão que incluem Meditação, Consciência e Autoconhecimento”.

A assessoria da Fundação também explica que desde 2017, por motivos pessoais, Jair Tércio se afastou da instituição, onde só exerceu a função de membro do conselho consultivo, no cartér de avaliador dos projetos. Além disso, a Fundação informa que nunca houve nenhuma reclamação direcionada a qualquer um dos seus membros: “Somos contra qualquer ação que fira a dignidade humana. Nosso compromisso com a educação e a formação integral é sempre pautado em valores como ética e transparência”.

Como denunciar

Em Salvador, existem duas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAM). Uma no final de linha do Engenho Velho de Brotas, na Rua Padre Luiz Filgueiras, e outra em Periperi, na rua Dr. Almeida, na Praça do Sol. As vítimas podem fazer a denúncia presencialmente, munidas de um documento de identificação. De forma remota, ela podem ligar para o Disque 180, que é a Central de Atendimento à Mulher, para o Disque 190, para prestar queixa diretamente à Polícia ou à Defensoria Pública da Bahia, pelo Disque 129. Há também a ONG A Tamo Juntas, que oferece assessoria e assistência jurídica para mulheres vítimas de violência. O contato pode ser feito através do Instagram @atamojuntas ou pelo e-mail [email protected]Correio da Bahia