Foto: Max Haack/Secom

O analista político Felippe Ramos avalia como “uma tragédia diplomática” o recente encontro do presidente Jair Bolsonaro com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, pouco antes do início dos ataques contra a Ucrânia.

Nesta entrevista exclusiva a este Política Livre, ele sugere que “o Brasil poderia ter ido oferecer a intermediação dos BRICS para a crise, oferecendo o Rio como sede de negociações de paz, por exemplo”.

“Poderíamos ser uma ponte entre nosso sócio russo dos BRICS e nosso parceiro estratégico americano no ocidente democrático. Estaríamos assim alinhados com nossa tradição diplomática de neutralidade e defesa da paz”, conta.

No campo da política local, o consultor se mostra “surpreso” com a desistência do senador Jaques Wagner (PT) em concorrer ao governo do Estado nas eleições deste ano. Para ele, “essa história ainda está muito mal contada”.

E prevê: “Na Bahia, já houve voto casado espontâneo da população em ACM Neto e Lula. É possível que isso ocorra novamente, por isso Neto mantém distância pública de Bolsonaro, muito malquisto na Bahia”.

Sobre a possível candidatura de Otto Alencar (PSD) contra Neto, ele calcula: “Entre um carlista do PT, como Otto, e um carlista de verdade, da nova geração, com muito boa avaliação e demonstrada competência à frente da Prefeitura, por que alguém ficaria com a cópia ao invés do original?”, questiona.

Confira a entrevista na íntegra:

Apesar dos noticiários, muitas pessoas não sabem ainda o que há por trás dos ataques da Rússia contra a Ucrânia. O senhor poderia explicar o motivo da guerra para esses leitores?

Felippe Ramos: Rússia e Ucrânia têm conexões históricas. O que hoje é a Rússia nasceu em Kiev. Mas devido ao vai-e-vem secular de domínios territoriais entre impérios, o lado ocidental [Ucrânia] ficou cada vez mais próximo culturalmente do continente europeu, enquanto o império russo de Moscou ganhou uma identidade eurasiana, ligada à Igreja Ortodoxa e em disputa geopolítica permanente com potências europeias. Já no século XX, quando Stalin governava a União Soviética, Moscou impôs um duro bloqueio que levou milhões de ucranianos à morte por fome no início da década de 1930. O episódio ficou conhecido como Holodomor [“morrer de inanição”, em ucraniano]. Isso alimentou sentimentos nacionalistas e separatistas. Quando a Segunda Guerra Mundial eclodiu, tropas nazistas invadiram territórios ucranianos. Hitler foi considerado aliado para derrotar Stalin e conquistar a independência da Ucrânia. Mas depois os ucranianos se voltaram contra o nazismo também ao perceber que trocariam um domínio imperial por outro. Vitoriosos na guerra, os soviéticos controlaram todo o território ucraniano, mas cederam o território da Crimeia para Kiev em 1954, onde fica o crucial porto de Sebastopol para os russos. Por isso houve a tomada da Crimeia em 2014. Outro importante ponto é que a expansão da OTAN, a aliança militar ocidental, após a queda da União Soviética, gerou um sentimento nos russos de estarem cercados. Putin quer redesenhar o mapa geopolítico europeu, evitar a adesão de mais países vizinhos à OTAN e mostrar ao Ocidente que está disposto a usar a força militar para alcançar seus fins. Com a invasão da Ucrânia, vemos que ele não está blefando, como se pensava. Quando o governo ucraniano pró-Rússia de Yanukovich caiu, em 2014, uma guerra civil eclodiu no leste do país, e Putin ajudou os separatistas russos da região Luhansk e Donetsk. Ali já estava dado o sinal de que Putin estava disposto a lutar por controle de partes significativas do território ucraniano. Hoje vejo que é difícil uma solução para o conflito se o Ocidente não aceitar um radical redesenho do mapa ucraniano, talvez cedendo o leste do país para a soberania russa. Obviamente, as potências ocidentais temem que isso incentive Putin a, considerando-se vitorioso, tomar mais territórios tanto na Ucrânia quanto em outros países. Se ele ousasse atacar um membro da OTAN, por exemplo, uma guerra mundial poderia eclodir.

Os ataques interferem na economia de diversos países. Como a guerra poderia afetar a Bahia por exemplo?

A Alemanha abandonou sua posição de evitar conflito com seu maior fornecedor de gás, principal fonte energética do país. Também anunciou um aumento sem precedentes do seu investimento militar, da ordem de 100 bilhões de euros. A Suíça deixou de lado sua política de proteger o dinheiro alheio em seu sistema bancário e financeiro e anunciou o congelamento de depósitos, investimentos e ativos russos em seus bancos. A Noruega, que detém o maior fundo soberano do mundo, com mais de 1 trilhão de dólares, anunciou que não aceitará mais dinheiro russo. Além dos impactos financeiros, há o impacto nas cadeias produtivas. A interrupção do fornecimento de petróleo e gás russos elevará os preços dos combustíveis e de todos os produtos derivados do petróleo. Rússia e Ucrânia respondem por cerca de um terço do fornecimento mundial de trigo. O agronegócio brasileiro depende muito dos insumos de fertilizantes provenientes da Rússia [25% da demanda nacional]. Tudo isso em meio a uma lenta recuperação econômica do Brasil em face à crise gerada pela pandemia e com inflação já alta, principalmente de alimentos, e desemprego e pobreza galopantes. O que posso dizer é que haverá impacto negativo no médio prazo. O povo deve se preparar para apertar os cintos e Bolsonaro deve se preparar para ter uma economia ainda em pior em meio às eleições de outubro.

Como viu a visita do presidente Bolsonaro a Putin momentos antes de a guerra ser deflagrada?

Uma tragédia diplomática. Veja, não haveria problema em ir a Moscou se a política externa brasileira tivesse uma liderança apta e estratégica, o que não é, sabidamente, o caso de Bolsonaro. O Brasil poderia ter ido oferecer a intermediação dos BRICS para a crise, oferecer o Rio como sede de negociações de paz, por exemplo. Poderíamos ser uma ponte entre nosso sócio russo dos BRICS e nosso parceiro estratégico americano no ocidente democrático. Estaríamos assim alinhados com nossa tradição diplomática de neutralidade e defesa da paz. Mas o que Bolsonaro foi fazer lá? Tirar foto com Putin para mostrar que não está isolado. Que ideia genial! Por que não tirar uma com Kim Jong-un também? Além do mais, a presença do filho Carlos Bolsonaro aponta para uma busca de ajuda cibernética russa para interferir em favor do pai na campanha da reeleição. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-PE) pediu explicações sobre essa ameaça à democracia brasileira. A grande presença de militares na comitiva a Moscou também preocupa. O que nossos oficiais quiseram mostrar? A comitiva deveria ter sido majoritariamente diplomática, com membros do Itamaraty. Os militares quiseram provocar os Estados Unidos? Parece-me um pouco estranho para um governo que prometeu aproximar-se dos Estados Unidos e até bandeira americana o presidente Bolsonaro segurava na rampa do Palácio do Planalto. Tudo isso aponta para o fato de que Bolsonaro e os militares, tornados párias no sistema internacional democrático, estão desesperados por atenção e sem estratégia clara e coerente. Com esse governo isso não tem mais jeito. É daí pra pior.

Na visão do senhor, o Brasil acerta ou erra ao manter certa neutralidade diante da guerra?

Bolsonaro contou 10% da verdade ao usar a desculpa da neutralidade como tradição do Brasil para não condenar a agressão militar russa. Quantas tradições diplomáticas ele já quebrou? Decidiu agora se apegar às tradições. Não cola. Sim, fato que o Brasil preza pela neutralidade em conflitos de modo a não se envolver militarmente e de manter as portas abertas para uma possível função mediadora. Mas quando os Estados Unidos invadiram o Iraque em 2003 sem autorização da ONU, o Brasil foi firmemente contra. Convidado por Bush para ajudar os americanos, o então presidente à época, Lula, se recusou. Acima do princípio da neutralidade, numa escala de valores, está o princípio da defesa intransigente da soberania dos Estados. Se assim não fosse, não teríamos entrado na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados. Hitler saiu invadindo países mais fracos. Nós enviamos soldados para lutar na guerra. Não acho que seria prudente tomar partido como se fôssemos um país europeu na mira dos russos. Não somos. Mas é nossa obrigação e tradição rejeitar enfaticamente que um país use a força militar desproporcional – uma potência nuclear – para atacar, invadir, anexar, mudar o mapa. Fizemos isso quando a força agressora foi os Estados Unidos e deveríamos ter feito isso com clareza e coerência quando a Rússia o faz. O Brasil, na ONU, acabou por votar junto a 140 países na condenação da invasão. O Itamaraty ainda respira. Mas a política externa tem sido incoerente, tem dado sinais contraditórios, não sabemos exatamente para onde aponta. Uma lástima!

O conselheiro de Putin, Alexander Dugin, já foi chamado de “Olavo de Carvalho brasileiro” e é apontado como um dos seus orientadores na guerra. Bolsonaro, Putin e Trump estão articulados neste processo da guerra?

Articulados, não. Mas o fato de serem três inimigos declarados da democracia os aproxima. Strongmen e populistas, mesmo quando discordam entre si, apoiam os fundamentos estratégicos que permitem que eles cheguem ao poder. Nenhum dos três acreditam nos seus gurus alucinados [Trump com (Steve) Bannon, Bolsonaro com Olavo, Putin com Dugin]. Mas eles sabem que as narrativas conspiratórias fantásticas são uma importante arma de embaralhamento do discurso e debate racionais. É a famosa tática da trollagem virtual adaptada às disputas políticas. Se você questionar a casa de seis milhões de reais de Flávio Bolsonaro em Brasília, os apoiadores do presidente, e o presidente diretamente, lançam uma maluquice de que vacina causa AIDS e aí o debate sobre o que importa é interditado. Apesar de Bolsonaro ser o mais limitado cognitivamente entre os três, todos eles sabem usar bem essa tática da trollagem.

A história confirma que ditadores e autocratas estão sempre por trás das guerras e que a solução para o mundo é irremediavelmente a democracia?

Há uma teoria liberal que diz que democracias não entram em guerra entre si. Mas elas entram em guerra frequentemente contra regimes não democráticos. Mas não acredito que se, hipoteticamente, todos os países fossem democráticos não haveria mais guerra alguma. Tenho uma raiz filosófica nietzscheana que me impede de acreditar que o ser humano seria capaz – ou merecedor – da paz perpétua, como Kant chamava. Haverá sempre guerra porque os seres humanos terão sempre conflitos por poder e dominação. Mas podemos reduzir a quantidade e intensidade de guerras. Após Hiroshima e Nagasaki, por exemplo, as guerras entre as potencias foram reduzidas. Por isso tivemos a chamada Guerra Fria. Foi ruim, mas melhor fria do que quente.

Como o senhor avalia a relação entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente norte-americano Joe Biden?

Em conversa com um amigo de Brasília bem relacionado com os militares, ele me contou que os militares se ressentem do desprezo de Biden por Bolsonaro. Óbvio. Bolsonaro não escondeu que estava basicamente fazendo campanha para Trump. Assumiu um lado da disputa eleitoral americana, algo sem precedentes para um presidente brasileiro fazer. Nossas relações são entre Estados e não entre compadres de boteco. Os filhos do presidente Bolsonaro chegaram a defender a tentativa de golpe de Estado articulada e defendida por Trump para impedir a posse de Biden, aquela invasão do Congresso americano por Xamãs de hospício. Vejo como resultado natural dessa trágica postura brasileira que Biden mantenha uma distância. Mas isso, esse meu amigo concluiu, empurrou Bolsonaro para os braços de Putin. Na minha opinião, Bolsonaro cometeu erro gravíssimo ao ser tiete de Trump e tentou consertar isso cometendo mais erro gravíssimo ao ser tiete de Putin.

Falando agora em política local, como avalia o anúncio da desistência de candidatura por parte de Jaques Wagner?

Uma surpresa, né? As pesquisas apontam uma liderança forte de ACM Neto. Mas Lula tem liderança forte no cenário nacional. Na Bahia, já houve voto casado espontâneo da população em ACM Neto e Lula. É possível que isso ocorra novamente, por isso Neto mantém distância pública de Bolsonaro, muito malquisto na Bahia. Mas um candidato petista histórico aumentaria as chances de tirar votos de Neto, levar a um segundo turno. Entre um carlista do PT, como Otto, e um carlista de verdade, da nova geração, com muito boa avaliação e demonstrada competência à frente da Prefeitura, por que alguém ficaria com a cópia ao invés de com o original?

Na prática, o PT simplesmente desistiu da disputa pelo governo? Se sim, a que o senhor atribui essa decisão?

Essa história ainda está muito mal contada. O que saiu em público não convence. Vamos precisar de mais furos de vocês jornalistas para juntar as peças desse quebra-cabeças. Mas a narrativa de que se trata de um problema causado por Rui me parece até agora a versão mais credível.

O que leva um partido a entregar o poder assim, sem o menor planejamento, e ainda aparentemente com bons índices de aprovação pela maioria da população?

Boa pergunta. Ninguém entrega o poder por vontade própria. Se isso ocorre é porque as fissuras na base governista são muito maiores e mais profundas do que imaginávamos. Talvez ninguém que já tem cargo assegurado no Senado, com confortável salário, projeção e imunidade, queria abrir mão disso pra competir em uma disputa desfavorável. Talvez Neto tenha atraído forças políticas do interior, rachando o carlismo da base petista. Mas são “talvezes”. O fato é que o PT pode terminar sua hegemonia à frente do governo da Bahia de forma melancólica. Mas como defensor da alternância no poder, considero que isso possa ser positivo no fim das contas. Já são muitos anos de PT no Palácio de Ondina. É saudável chacoalhar as elites políticas de vez em quando. Política Livre