Crédito: Leonardo Araújo/Guaraná do Brasil/Divulgação

A lenda é antiga e conhecida. Apesar das diferenças, muitas versões narram a trajetória de um casal de indígenas Maués que queria ter filhos e fez um pedido a Tupã. A divindade concedeu o desejo e, um tempo depois, veio um menino que cresceu lindo e generoso. Porém, o garoto despertou a inveja de Jurupari, a entidade do mal. Um dia, Jurupari se transformou em serpente e mordeu a criança, que morreu na hora.

A mãe chorava, desesperada, ao passo que trovões e relâmpagos surgiam no céu. Ela entendeu que era um recado de Tupã para plantar os olhos do filho e assim o fez. Naquele local, cresceu uma planta cujos frutos lembram olhos humanos – o guaraná. Pela história – seja a lenda, seja a factual, já que Maués tanto é o nome da etnia quanto de uma cidade amazonense cuja economia gira em torno da fruta -, pouca gente imaginaria que é possível associar o guaraná a qualquer outro lugar que não seja a região amazônica.

A realidade, contudo, é que boa parte do guaraná que você consome – das bebidas aos comprimidos, passando por produtos de beleza – pode até ser símbolo da Amazônia, mas provavelmente veio da Bahia. Maior produtor de guaraná do mundo, o estado respondeu por quase 64% de toda a colheita brasileira no ano passado, de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A última safra chegou a alcançar 1,5 mil toneladas.

Além disso, das 15 cidades que mais produzem guaraná no país, dez são baianas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A liderança no Brasil é de Ituberá, no Baixo Sul do estado, e as ‘colegas’ de região Valença e Taperoá também fazem bonito: são, respectivamente, a terceira e a quarta do país.

Comercializado em pó ou em grãos, o guaraná baiano atende tanto ao mercado interno quanto ao exterior, com envios para países como Alemanha, Itália, França e Estados Unidos.

Embora o guaraná não seja uma espécie nativa, a Bahia tem mais do que o dobro do segundo estado – o Amazonas, de onde o guaraná vem originalmente, e que fica em torno de 28%. “Quase todos os estados brasileiros compram o guaraná da Bahia. O mercado do Amazonas é voltado para cá, para o próprio estado, e tem algumas coisas para exportação. Já o da Bahia é muito comercializado pelo preço”, explica o agrônomo André Atroch, pesquisador da Embrapa Amazônia Ocidental da área de melhoramento genético do guaranazeiro.

Mas se o guaraná não é nem mesmo uma fruta local, o que explica o domínio da Bahia? Para entender as razões pelas quais o estado se tornou o maior produtor do país – e, consequentemente, do planeta, uma vez que o Brasil responde por mais de 90% da produção mundial -, é preciso analisar tanto aspectos históricos quanto o contexto atual.

Mudas

O primeiro registro de que se tem notícia do guaraná na Bahia é de 1925, quando a então Sociedade Bahiana de Agricultura introduziu mudas da espécie no Retiro. Menos de uma década depois, em 1933, 30 mudas foram plantadas na Estação Experimental de Água Preta – que depois viria a ser Escola Média de Agricultura da Região Cacaueira, em Uruçuca, e atualmente é um campus do Instituto Federal Baiano (IF Baiano). Mas foi apenas em 1961 que o primeiro plantio de guaraná com fins comerciais foi feito na Bahia.

Outro ponto importante na linha do tempo do guaraná aconteceu a nível nacional: foi a promulgação do decreto 5.823, que ficou conhecido como Lei dos Sucos, em 1973. Essa legislação, de acordo com a Embrapa, acaba por beneficiar a chamada domesticação. Uma vez que ficou estabelecido que cada litro de refrigerante teria entre 0,2g a 2g de guaraná, enquanto o xarope deveria ter de 1g a 10g de guaraná por litro, a consequência direta foi que a demanda pelo produto aumentou.

“Quando o decreto foi regulamentado, foi um divisor de águas. Muita gente passou a se interessar por isso”, explica o pesquisador Lucio Pereira Santos, da Embrapa Amazônia Ocidental. “A Bahia viu essa oportunidade, porque era um negócio que estava crescendo muito no mundo e o clima tinha muita similitude com o daqui (do Amazonas)”.

As pesquisas com o guaraná na Bahia foram iniciadas pela Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), em 1975. Naquele momento, materiais do antigo Centro de Pesquisa Agropecuária do Trópico Úmido (Cpatu), hoje Embrapa da Amazônia Ocidental, foram levados para a estação experimental no município de Una.

Produzir uma cultura permanente, que era a ideia do guaraná na Bahia, envolve um manejo diferente de uma cultura temporária, segundo o chefe da seção de pesquisas agropecuárias do IBGE no estado, Rodrigo Anunciação. “Aquela planta fica alguns anos produzindo, porque envolve um custo. Essa produtividade da Bahia se dá por ter uma área muito grande plantada. É uma agricultura essencialmente de pequeno porte”, diz.

Aos poucos, mais fazendas do Baixo Sul baiano começaram a plantar guaraná. Dentro de alguns anos, o guaranazeiro se popularizou naquelas terras. Segundo o engenheiro agrônomo Assis Pinheiro Filho, diretor de desenvolvimento da agricultura da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Pesca e Aquicultura do Estado (Seagri), a grande vantagem da região é que se trata de uma área propícia para o cultivo.

Além da possibilidade de plantar o ano todo, com chuva e Sol, o solo está sempre úmido. Assim, as condições climáticas não são muito diferentes das encontradas na Amazônia, local de origem do guaraná. “Acho que o principal para a Bahia ter conseguido isso foi essa questão da pesquisa, do clima do Baixo Sul ser propício e a EBDA ter criado essa cadeia produtiva do guaraná, difundindo o plantio”, diz Pinheiro Filho, citando a extinta Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola, que deixou de existir em 2016.

A forma de produção do guaraná também é diferente na Bahia. Por muito tempo, o Amazonas tinha uma produção que poderia ser comparada ao extrativismo, ainda que novas mudas sejam plantadas. Já os produtores baianos focaram no plantio comercial, com técnicas de espaçamento, o que possibilitou o crescimento.

Produtividade

De fato, segundo o pesquisador André Atroch, da Embrapa Amazônia Ocidental, o Baixo Sul baiano tem solos considerados mais férteis, o que já leva a uma produtividade maior. Além disso, embora os dias sejam quentes, as noites costumam ter temperaturas mais amenas. Isso evita que doenças fúngicas, como a antracnose, que ataca o guaranazeiro, se espalhem. Elas são comuns na região amazônica, sendo um desafio para os produtores de lá.

“Então, em meados da década de 1980, a Bahia começou sem problemas de doença e alta produtividade”, explica. Pela oferta, é comum que o guaraná daqui seja mais barato do que o do Amazonas. Mas em agosto deste ano, quando atingiu um preço razoável para os produtores, a diferença era de R$ 50 pagos aos produtores baianos por quilo contra R$ 43,61 no Amazonas.

Foi justamente a presença da antracnose que fez com que a unidade de pesquisa começasse o trabalho de melhoramento no Amazonas, como explica o pesquisador Lucio Pereira Santos, também da Embrapa. Por isso, chegaram à conclusão de que era necessário mudar a forma de propagação do guaranazeiro. Ao invés de sementes, passaram a usar mudas clonadas, tal qual a indústria de celulose.

No entanto, em suas últimas visitas à Bahia, ele chegou a identificar focos de antracnose surgindo, assim como exemplares com Tripes, insetos pequenos conhecidos como tesourinhas e que também são uma praga.

“Não existia explicação científica para não ter atacado aí. Por isso, acredito que muitos plantios podem ter convivido com isso sem ninguém saber. Por isso, estamos com a proposta de levar materiais resistentes e trabalhar com nossos tratos. Já fui dar aula de poda a vários municípios produtores”.

Segundo ele, ainda que a Bahia se mantenha na liderança, os números têm indicado uma queda gradual na produtividade. Em 2015, por exemplo, a Bahia tinha 6.736 hectares de área colhida, com produção de 400 quilos por hectare. Em 2022, foram apenas 5,5 mil hectares, com produção de 281 quilos por cada um deles.

“Fiquei pasmo com isso. Eu não sei o que aconteceu. Acho que é falta de estímulo. Por que o guaraná despenca? Falta de poda, de adubação e de tratos culturais. Parece que o pessoal está abandonando e na hora errada, porque o guaraná em ramo já bateu R$ 70 o quilo”.

Variar a produtividade, segundo o presidente da Federação da Agricultura e da Pecuária na Bahia (Fameb), Humberto Miranda, é a “norma” para cadeias como a do guaraná. Seria um fator sazonal, já que o guaranazeiro produz, em geral, apenas depois do quinto ano de idade.

“Vejo o guaraná como uma cultura do futuro, porque está entrando numa possibilidade de mercado cada vez maior. Ele tem sido muito utilizado em produtos naturais, na saúde de atletas e de pessoas que praticam exercícios, como fonte de energia”, avalia.

Parceria

Foi na década de 1980 que os fundadores da empresa Guaraná do Brasil, uma das principais do estado, adquiriram a primeira fazenda produtora de guaraná, em Ituberá. Depois da Jacarandá, veio a fazenda Karina, também referência para a colheita da região. No começo, foi um trabalho com erros e acertos, como conta o proprietário das fazendas e representante da Guaraná do Brasil, Leonardo Araújo.

Ele e seu irmão estão hoje à frente da empresa, criada por seus pais. Por iniciativa própria, os fundadores buscaram a parceria com a Embrapa da Amazônia ainda no início dos anos 2000. Segundo ele, isso ajudou tanto a desenvolver o guaraná na região quanto a própria produção da empresa.

Atualmente, a Guaraná do Brasil tem uma área de 72 hectares destinada ao cultivo do guaraná. “Iniciamos um processo de reprodução intenso onde a maior parte dessas plantas será da variedade BRS Noçoquém, que é a primeira variedade de guaraná do mundo a ser propagada por sementes”, explica, sobre o replantio que será feito em parceria com a Embrapa.

A meta também é plantar cerca de 1,5 mil plantas entre 2023 e 2024, sendo elas propagadas por estacas. Além da BRS Noçoquém, o plano é que cinco novas variedades sejam introduzidas nas fazendas. Para o ano que vem, os planos são de fazer o primeiro estudo sobre guaraná orgânico no Brasil. A empresa vem investindo no guaraná orgânico, cujo manejo é diferente do guaraná convencional.

Enquanto o tradicional depende menos do trabalho de roçagem e usa herbicidas para controle do mato, o guaraná orgânico exige que a roçagem seja feita quatro vezes por ano. Além disso, a colheita aqui acontece do final de novembro até fevereiro. Depois da colheita, é preciso fazer um cronograma de adubação que segue até o período de floração. Em seguida, é feito o controle de ervas daninhas para a safra seguinte.

Um dos maiores desafios de se produzir guaraná orgânico na Bahia, hoje, é a falta de pesquisas sobre o manejo desse tipo de fruta, para Araújo. “São muitas coisas diferentes do convencional. É começar a olhar com outros olhos para adubação biológica ao invés de olhar apenas para adubação mineral. São as maneiras de enfrentar esses nossos problemas, como o controle do mato”.

A outra questão a ser enfrentada é a variação de preço no guaraná. Segundo ele, atualmente, na Bahia, existe um movimento para dar um preço justo ao guaraná. Muitos pequenos produtores acabavam vendendo por valores muito abaixo dos custos, por isso, o valor foi elevado nos últimos tempos. Ainda assim, existe variação praticamente todos os meses. Correio da Bahia