Correio da Bahia

O peixe está na mesa dos baianos: na moqueca, no ensopado, frito, grelhado, assado. O problema não é comer, mas saber qual a qualidade, a saúde e a origem do pescado que vai parar na mesa dos baianos. Se o consumidor final não sabe, a má notícia é que as autoridades sanitárias também não. Uma pesquisa divulgada no último dia 8 pela ONG Oceana mostrou que não existe um monitoramento sobre saúde, qualidade e origem dos pescados na Bahia.

Na verdade, essa realidade se reflete em todo o país. O relatório da ONG mostra que 94% dos estoques de pescaria no Brasil têm situação desconhecida. A falta de informações, por si só, já é um problema grave, de acordo com especialistas, mas se torna ainda mais séria quando a Bahia vê crescer, nos últimos meses, o número de casos de uma doença cujo principal ‘suspeito’ de causá-la é justamente um peixe.

De agosto a 9 de dezembro deste ano, a Bahia voltou a registrar casos da doença de Haff, que provoca rigidez muscular, deixa a urina com cor escura e pode até levar à morte se os sintomas não forem tratados rapidamente. Quase 73% dos casos aconteceu em novembro, mas a Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) ainda está aguardando resultados laboratoriais da análise feita em amostras do peixe olho-de-boi, consumido por 75% das pessoas que tiveram a doença.

Na prática, não se sabe se a toxina associada aos sintomas da doença vem do peixe, do mar ou de outro lugar. “A toxina tem a ver com as algas, quando os peixes se alimentam delas. A gente está rastreando de onde esse peixe vem para fazer a análise se essa toxina tem a ver com as algas, porque o olho-de-boi não come alga, ele se alimenta de outros peixes. E a doença de Haff é associado ao consumo de peixes de água doce. O olho-de-boi é de águas profundas e salgadas”, afirma a diretora de vigilância epidemiológica da Sesab, Márcia São Pedro.

“Quando você não sabe a localidade do pescado, é difícil você associar à sua qualidade. Você não sabe se ele circula em uma área de contaminação urbana ou crônica, se ele veio de uma das praias que sofreram contaminação pelo óleo no ano passado. Nós consumidores não temos como adivinhar. Isso coloca a gente em risco, porque a gente está consumindo um pescado que não sabe de onde veio”, analisa o professor Francisco Kelmo, diretor do Instituto de Biologia (Ibio) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Na Bahia, a última estatística sobe pesca no território foi feita em 2006 (leia mais ao lado).

No escuro
A falta de informações sobre a situação do que é pescado não é um problema só da Bahia. O relatório da ONG Oceana – com dados nacionais – mostra que 48% das pescarias brasileiras atuam em áreas onde não há qualquer estatística pesqueira. Apenas 23% das pescarias do país são de fato monitoradas e só 25% têm um Mapa de Bordo, documento que contribui para a geração de dados de captura.

O estudo mostra ainda que, dos 118 estoques de pesca avaliados, apenas 3% têm limites de captura e só metade das 44 pescarias possui alguma modalidade de ordenamento, como o período defeso (quando a pesca é proibida pela espécie estar em época reprodutiva), tamanhos mínimos de captura e restrição de área.

Cerca de 10% das pescarias do país não têm qualquer tipo de regramento. Na prática, significa que basta ter uma rede e ir pescar – se o mar tiver peixe. Isso porque, em alguns casos, não se saber sequer se há mesmo peixe para ser pescado.

“Não sabe se a saúde desse estoque, se tem pouco, se tem muito, se ele pode suportar uma captura maior, se se deve reduzir o nível de mortandade que se está aplicando, é um desconhecimento completo e isso é muito grave. O governo brasileiro autoriza a pesca, mas não faz a menor ideia se vai ter peixe”, alerta o diretor-científico da Oceana, Martin Dias.

Segundo ele, as únicas três espécies com algum tipo de acompanhamento no país são o atum, a lagosta e a tainha, mas nenhum é de fato monitorado pelo governo federal. Como o atum é um peixe que circula em todo o Oceano Atlântico, ele é fiscalizado pela Comissão Internacional para a Conservação do Atum Atlântico (Iccat).

Já a lagosta, a única dos três que anda em mares nordestinos, é umas poucas que se tem notícia – e não é das boas. Ela corre o risco de desaparecer: houve uma redução de 85% de sua biodiversidade desde o início da atividade pesqueira no país, na década de 1950. “A gente tem uma biomassa com reduções de 80% a 85%. Isso é uma situação crítica, ela corre o risco de colapso”, conta Dias.

Um dos principais perigos dessa falta de acompanhamento e fiscalização é uma possível redução da biodiversidade marinha, como aponta Francisco Kelmo. “Essa pesca indiscriminada, não planejada e não supervisionada coloca em risco a biodiversidade marinha. O uso indiscriminado do recurso natural vai levar a uma falta, principalmente às espécies comestíveis”, avalia Kelmo.

Estudo
A partir de janeiro do ano que vem, o laboratório coordenado por Kelmo pretende iniciar um estudo que pode ajudar a compreender como a doença de Haff se manifesta e, afinal, de onde vem a toxina que a provoca. O pesquisador explica que essa toxina pode estar presente tanto no olho-de-boi como no badejo. Ela é resistente ao cozimento e não tem sabor – isso, talvez, explique a razão pela qual a doença se manifestou tanto em quem comeu o peixe in natura quanto congelado.

“A doença se manifesta a partir de uma toxina resistente ao cozimento, ela não se desnatura com uma temperatura elevada e não tem sabor, o que faz com que o consumidor não saiba se está ingerindo o peixe com a toxina”, afirma.

A equipe coordenada por Kelmo quer saber, agora, como a toxina chega ao peixe. Para ele, existem duas possibilidades. “Ou ele come alguma coisa que já possui a toxina e a toxina passa para o corpo dele, ou ele come algo que estimula a produção da toxina no corpo. O que se sabe é que a toxina é transmitida na cadeia alimentar”, diz Kelmo. É por isso que conhecer a origem do peixe é tão importante.

Última estatística na Bahia já tem 14 anos
As últimas estatísticas sobre a pesca no território baiano foram feitas há 14 anos, em 2006, pela Bahia Pesca, ligada à Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Pesca e Aquicultura (Seagri).

“O Estado brasileiro não faz estatísticas na Bahia desde 2006. De lá para cá, a gente não conhece e não sabe como estão esses estoques. E a estatística pesqueira é o ponto de partida para quase tudo de conhecimento sobre o estoque, porque você consegue avaliar se ele está diminuindo, normalizar, gerenciar e garantir acesso permanente. A gente só vai sentir isso a longo prazo, quando uma espécie entrar em declínio”, explicou o biólogo especializado em ecossistemas costeiros e marinhos Roberto Pantaleão, assessor técnico da Bahia Pesca.

Pescador profissional desde 1976, Pantaleão afirma que a pesca na Bahia é essencialmente artesanal, pelo trabalho manual do pescador. Como as embarcações normalmente são de pequeno e médio porte, a exploração é mais costeira. “Legalmente, você tem que ter permissão para pescar qualquer peixe. Na prática, você tem uma fiscalização bastante ineficiente”.

Uma das soluções apontadas pelo advogado especialista em direito ambiental e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Júlio Rocha, é preservar os ecossistemas marinhos. “Deveria ter um monitoramento ambiental dos ecossistemas, e, ao mesmo tempo, uma lógica de pesca que fosse sustentável”, pontua.

A Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP), ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), informou em nota que tem buscado “outros órgãos federais, governos estaduais e municipais, instituições acadêmicas e Institutos de pesquisa – criar uma rede de troca de informações”.

A SAP disse que a deficiência de dados sobre o setor não é exclusiva do Brasil. Atualmente, existem 114.591 pescadores profissionais na Bahia e 1.217 embarcações inscritas. No Brasil, são 28.908 tipos de barcos e 987.650 pescadores.

Tem sintomas da doença de Haff?
A Sesab orienta que, se houver o aparecimento de algum dos sintomas da doença – diarreia, dor de garganta, prurido, tosse, rabdomiólise, dor torácica, na panturrilha e no trapézio, náuseas, urina preta, dor muscular, dor nas articulações, dor de cabeça – 24 horas após a ingestão de peixe, deve-se procurar a unidade de saúde mais próxima. Veja todas as orientações:

– Busque a unidade de saúde mais próxima

– Realize exame para dosagem de creatinofosfoquinase (CPK) e TGO

– Realize coleta de swab nasal para RT-PCR/COVID-19

– Observe a cor da urina (escura) como sinal de alerta e o desenvolvimento de rabdomiólise (degradação do tecido muscular)

– Realize hidratação do paciente imediatamente, durante 48 ou 72 horas

– Não utilize anti-inflamatórios

– Identifique outros indivíduos que possam ter consumido do mesmo peixe ou crustáceo para captação de possíveis novos casos da doença. (Correio da Bahia)