A retirada de questões detalhadas envolvendo temas como fontes de renda, formação escolar e bens de consumo do Censo 2020 gerou críticas entre especialistas da área de pesquisas. Para eles, a falta dessas informações impactará diretamente o planejamento do país. Após as discussões sobre o corte de verbas para a realização da pesquisa e o anúncio da redução no número de perguntas a serem aplicadas, o IBGE divulgou na segunda-feira (1), os questionários que serão usados no levantamento do Censo Experimental, previsto para acontecer entre setembro e novembro deste ano em Poços de Caldas (MG).

No ano que vem, após o Censo Experimental, os questionários deverão ser usados no Censo 2020 – o básico, com 26 questões, será aplicado em cerca de 21 milhões de domicílios. Já o questionário da amostra, mais detalhado, trará 76 questões e será aplicado a cerca de 7,1 milhões de domicílios, ou cerca de 10% do total do país. O número de questões representa 32% menos em relação ao formulário original, que teria 112 questões.

O Censo 2020 vai coletar informações em todos os 5.570 municípios brasileiros entre os meses de agosto e outubro do próximo ano, que serão visitados por cerca de 180 mil recenseadores a serem contratados. O Censo é uma ferramenta importante para o governo, pois é com base nos dados das condições de vida da população que são traçadas políticas públicas relacionadas à saúde, educação, habitação, segurança, benefícios sociais, entre outros.

Valor do aluguel

Entre as mudanças propostas para o próximo Censo está a retirada da pergunta sobre o valor do aluguel pago. Para os pesquisadores, isso implicará na dificuldade em obter informações sobre o déficit habitacional do país.

Aluguel 2010 — Foto: IBGE/Reprodução
Aluguel 2020 — Foto: IBGE/Reprodução

“Se você não coleta essas informações no nível mais detalhado do Censo significa que a gente não sabe mais identificar onde essas pessoas estão morando com déficit habitacional. Você precisa saber onde essas pessoas estão para dirigir empreendimentos imobiliários, públicos e privados, que vão sanar esse problema. Se você não coleta essa informação, você está prejudicando a implementação direta das políticas públicas e, principalmente, a identificação de onde você precisa ir atuar”, apontou Rogério Barbosa, mestre e doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP, em entrevista à Rádio USP.

A coordenadora do núcleo Chile da Associação dos Servidores do IBGE (ASSIBGE), Luanda Botelho, também critica as mudanças feitas no questionário: “Essa é uma informação central para saber o déficit habitacional do país. Quantas pessoas precisam de moradia? Onde elas estão? Quem são? Perguntas como essas não poderão ser respondidas com o Censo 2020 da maneira como ele está”, diz.

Para Thêmis Amorim Aragão, pesquisadora do Observatório das Metrópoles, ligado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, e professora no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, a supressão da questão sobre valor do aluguel inviabiliza análises sobre o papel do mercado na política de habitação.

Segundo ela, no caso das políticas urbanas, em especial a política de moradia, o déficit habitacional representa o principal indicador que baliza as ações do poder público.

“As favelas são o lugar de moradia da larga parcela da população que, por questões de renda, não conseguem acessar o mercado imobiliário formal. Já o aluguel é a modalidade de habitação daqueles que estão no limiar de se tornar déficit. São famílias que não conseguem acessar o crédito para a compra do imóvel, mas conseguem arcar com o ônus excessivo do aluguel”, afirma.

Segundo ela, não há no país uma base territorializada de dados oficiais do valor dos imóveis urbanos, levando em conta que a planta cadastral não reflete os valores que o mercado opera. Também não há dados de inadimplência nem dados dinâmicos de vacância.

“Não sabemos quanto tempo os imóveis ficam vazios antes de entrar ou retornar ao mercado. Em suma, não sabemos quase nada sobre a atividade econômica que deveria prover imóveis acessíveis à população. Não temos condições de identificar cientificamente, sem assumir cegamente os discursos dos promotores imobiliários, quais os gargalos do mercado. Não temos condições nem ao menos de afirmar a especulação, exatamente por falta de dados. A única variável oficial que monitorava e fazia o link entre política e mercado de moradia era o dado do aluguel”, explica Thêmis.

Posse de bens

Outra informação que deixará de ser coletada é a posse de vários bens, como automóvel, motocicleta, computador, telefone celular, geladeira e televisão, que constavam no levantamento de 2010. No Censo 2020, estão previstas apenas questões sobre a posse de máquina de lavar roupa e de acesso à internet.

“Isso impede que se conheça a pobreza que vai além da pobreza monetária, que é a pobreza multidimensional”, diz Luanda, da ASSIBGE.

“Se você vai numa cidade do interior o domicílio não vai ter máquina nem internet, vai ter televisão”, afirma Roberto Olinto, ex-presidente do IBGE e atualmente pesquisador associado no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

Posse de bens - 2010 — Foto: IBGE/Reprodução
Posse de bens 2020 — Foto: IBGE/Reprodução

Olinto, que foi substituído em fevereiro por Susana Cordeiro Guerra, discorda da alegação do IBGE de que outras pesquisas do instituto já fornecem as informações que deixarão de ser coletadas. Segundo Eduardo Rios Neto, diretor de pesquisas do IBGE, a PNAD trimestral já coleta informações sobre aluguel e bens de consumo, por exemplo.

“A PNAD contínua não é feita a nível de município, é feita por amostra e não vai no domicílio. A pesquisa abrange 3,5 mil municípios com 70 mil entrevistas por mês”, diz Olinto.

O ex-presidente do IBGE explica que o Censo abrange 10% do total de domicílios do país do país (7 milhões). “A Pnad Contínua é por amostragem. Tem que ir naquele domicílio e, se não responder, faz sorteio para ir a outro. No caso do Censo, se um não quiser responder, outro responde. A amostra é coletada para ter representatividade municipal. Tem informações que não preciso ter para cada pessoa, mas por município, por isso que a amostra funciona”, defende.

Outro aspecto que o pesquisador aponta é a necessidade de apurar de forma detalhada a renda dos brasileiros.

Fontes de rendimento

A pesquisa de 2020 deixará de discriminar as fontes de rendimento que não os do trabalho: questiona apenas se o entrevistado recebeu algum “rendimento bruto mensal de aposentadoria, pensão, bolsa família, BCP, aluguel ou outra origem”.

Em 2010, esses rendimentos eram especificados – questões separadas indicavam as fontes de rendimento, como aposentadoria, Bolsa Família, aplicações financeiras, aluguel, entre outros.

Fontes de renda 2010 — Foto: IBGE/Reprodução
Fontes de renda 2020 — Foto: IBGE/Reprodução

Para Rogério Barbosa, pesquisador do CEM, com a renda domiciliar é possível georreferenciar com precisão a pobreza, que é a renda domiciliar per capita abaixo de meio salário mínimo ou de um quarto de salário mínimo.

“Essa informação por exemplo foi muito importante para o Ministério do Desenvolvimento Social durante a década de 2000 e 2010 para que ações de busca ativa da assistência social fossem efetuadas e pessoas pudessem ser atendidas e cadastradas no Cadastro Único. Assim, informações de pobreza deixarão de ser coletadas em nível individual, logo as ações de assistência social deixarão de ser orientadas de maneira mais detalhada. Isso é um grande impacto”, afirma.

“Precisa calcular a geração de renda de aluguel. As pessoas que têm imóvel próprio têm uma renda do ativo delas. Se não tivessem, pagariam aluguel. Todos esses detalhes envolvendo renda e valores de aluguel por municípios e tipo de habitação deixarão de ser coletados”, diz Olinto.

O ex-presidente do IBGE cita ainda que hoje as pesquisas mostram apenas a renda do responsável e não a renda total da casa. “São pequenas perdas que vão acontecendo. Você reduz uma informação sem ter encontrado uma alternativa para isso”.

Para Luanda Botelho, a mudança impacta os benefícios do INSS. “Não saberemos, por exemplo, qual é a renda dos idosos vinda de suas aposentadorias. Assim como não saberemos quem são as pessoas com deficiência que não recebem o Benefício de Prestação Continuada”, aponta.

Emigração

Outra crítica é quanto à retirada do tema emigração do questionário básico, que ficará apenas no questionário da amostra. Essa é a informação que permite que se saiba quantas pessoas foram morar fora do país e onde elas estão morando.

Roberto Olinto considera que isso afetará as estimativas populacionais do futuro, levando consequências, por exemplo, para o Fundo de Participação dos Municípios.

“Tem que ter informações básicas para trabalhar com uma base coletada. Isso fragiliza as estimativas populacionais e teremos milhares de prefeitos reclamando de verbas. Isso pode acarretar uma demanda judicial enorme. Quanto mais indiretas as estimativas populacionais mais frágeis elas ficam”, diz.

O ex-presidente do IBGE defende um cadastro nacional de endereços, com cada pessoa tendo um número único. E, em caso de mudança, a pessoa teria de comunicá-la à polícia. Para ele, isso resolveria a coleta de dados envolvendo a emigração.

Para a ASSIBGE, os cortes nos blocos de emigração internacional afetarão gravemente as estimativas e projeções populacionais, comprometendo os cálculos referentes à distribuição do Fundo de Participação dos Municípios.

“Além de ser importante para a compreensão do volume de saída de brasileiros do país, é um número essencial para o cálculo da projeção populacional”, afirma Luanda Botelho. “O Censo conta a população de 2020, mas para saber quantos brasileiros terão em 2021, 2022, 2023 até a data do próximo Censo, 2030, você precisa da projeção. E para fazer a projeção você precisa desses ‘movimentos’ da população: quantas pessoas nascem, quantas morrem, quantas entram no pais e quantas saem”.

O questionário também não vai especificar a rede de ensino frequentada pelo entrevistado. Em 2010, o instituto questionou se o ensino era cursado em rede pública ou particular.

“Se você tivesse um cadastro de todos os estudantes de escolas públicas e privadas no brasil estaria resolvido o problema. Os questionários do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais vinculado ao Ministério da Educação] e do IBGE não estão integrados”, diz Olinto.

Rede de ensino 2010 — Foto: IBGE/Reprodução
Rede de ensino 2020 — Foto: IBGE/Reprodução

Impacto no planejamento do país

“Os problemas vão aparecer daqui a três anos, ao tabular os dados é que vão ver que faltam informações, aí o mal terá sido feito. Você perde informações no maior nível de detalhe que impede de fazer política habitacional, de entender melhor o que é escola pública e privada, problema de migração. Perde uma grande oportunidade de avançar numa base de dados. Ao reduzir o Censo eu não discuto o plano de informações demográficas coerente para o Brasil”, aponta Olinto.

Para Rogério Barbosa, o Censo é utilizado como parâmetro fundamental para o desenvolvimento de pesquisas. Segundo ele, a falta desses dados impacta diretamente o planejamento do país.

“A grande questão é avaliar qual é o impacto orçamentário real do Censo no montante do orçamento brasileiro. É preciso pensar nele como um investimento, ou seja, eventuais custos retornam na forma de crescimento econômico e melhoras públicas mais focalizadas”, disse o pesquisador. Informações do G1