Em uma noite de domingo, em Itaituba, no oeste do Pará, uma churrasqueira de espetinhos ainda está acesa para atender aos clientes que tomam cerveja no bar. Humberto Soto Armand, médico cubano com 22 anos de experiência, clínico geral, especializado em endoscopia e gastroenterologia, assa carnes para sobreviver.

Em novembro do ano passado, o governo de Cuba ordenou a volta de todos os profissionais cubanos que participavam do programa Mais Médicos, depois que o presidente Jair Bolsonaro criticou os termos do acordo. O governo cubano considerou as declarações de Bolsonaro ameaçadoras e depreciativas.

A repórter Eliane Scardovelli conheceu Humberto e outros dois médicos cubanos que decidiram não voltar, mas que também não podem mais exercer a medicina no Brasil. Agora, eles são considerados desertores pelo governo cubano.

“Eu tô casado aqui, a minha mulher está gravida. Então eu tenho que fazer alguma coisa para sobreviver no Brasil. É difícil trabalhar nisso que estamos fazendo. É um pouco difícil”, conta o médico Miguel Elias.

Além de Humberto e Miguel, outros oito médicos cubanos trabalhavam em aldeias indígenas paraenses, que ficam até 700 km de distância de Itaituba. O governo fez três editais para que as vagas deixadas por eles fossem preenchidas.

Miguel, por exemplo, é formado há 18 anos e agora trabalha como empacotador em um mercado. “É incrível que a gente fique aqui, fazendo esse trabalho, que é um trabalho digno para mim, eu não tenho frescura em trabalhar. Só que é difícil. Eu tenho 18 anos de medicina. Ficar empacotando aqui, enquanto tem comunidade sem médico, é ruim.”

Comunidades no sertão do Ceará ficam meses sem atendimento médico

A repórter Alana Oliveira foi para o sertão do Ceará. Em uma região de difícil locomoção, faz meses que as comunidades estão sem receber atendimento médico.

De Monsenhor Tabosa, que fica há 300 km de Fortaleza, enfermeiras precisam andar 20 km para chegar numa comunidade do sertão cearense. Lília fala sobre as famílias que precisam de assistência médica, com receita especial e que ela, como enfermeira, não pode fazer a prescrição.

Faz seis meses que não tem médico nas comunidades. A doutora Viviane, médica cubana, ia uma vez ao mês. Pela falta desses profissionais, o hospital de Monsenhor Tabosa ficou sobrecarregado e a população reclama.

“Em cada posto de saúde tinha um médico cubano, o que desafogava muito o nosso hospital. Não ficava cheio, a gente não demorava tanto para ser atendido. Nós sentimos falta, porque nós não temos nenhum tipo de atrativo, a cidade é muito pequena. Os médicos para virem para cá se torna mais difícil”, conta a dona de casa Cleide da Silva.

A Secretaria de Saúde do município diz que ainda há quatro vagas do programa Mais Médicos que não foram preenchidas. “Os pacientes já estavam acostumados. Tinha toda uma rotina de cuidado, de assistência e atenção. Infelizmente, essa rotina foi quebrada. Aquela visita domiciliar que era feita frequentemente teve que ter uma parada e a gente tenta suprir essa necessidade, mas é extremamente complicado”, afirma a secretária de Saúde de Monsenhor Tabosa, Celi Saraiva.

Monsenhor Tabosa só conseguiu preencher uma das vagas deixadas pelos cubanos. O médico que aceitou ir para o município é Luciano Petrola e ele conta as dificuldades do trabalho. “Falta o básico do básico. Tá faltando água aqui no posto. A gente não pode transmitir doenças. Entre um paciente e outro eu teria que lavar as mãos para evitar. O mínimo que precisava ter era água.”

Mais de mil médicos brasileiros já desistiram do programa até abril de 2019

O Ministério da Saúde abriu editais para preencher as 8.517 vagas deixadas pelos cubanos; 7.120 foram preenchidas por médicos formados no Brasil e as 1.397 vagas que sobraram, foram oferecidas para os brasileiros formados no exterior. Até o início de abril deste ano, 1.052 médicos brasileiros desistiram do programa.

No Rio Grande do Sul, por exemplo, o estado só conseguiu preencher as últimas 111 vagas que ficavam longe da capital e com profissionais que se formaram no exterior. Em Ajuricaba, uma cidade com pouco mais de 7 mil habitantes, a prefeitura contratou em caráter de emergência um médico para trabalhar meio turno e ganhar R$ 8 mil. Ele é responsável por atender nas três unidades básicas de saúde do município.

“Tá um pouco sobrecarregado. A gente vai dando um jeito. Me revezo nas três unidades básicas buscando atender todo mundo”, diz o médico Maicon Bizarello. Ele também explicou o motivo de ser tão difícil trazer profissionais da saúde para as regiões mais afastadas: “O médico não tem plano de carreira municipal, ele não tem vínculo nenhum com o município. A partir do momento que você vai para um hospital no grande centro, você tem sonho de trabalhar nele. Preciso fazer uma tomografia? Pronto. Aqui, a gente precisa mover mundos.”

O repórter Guilherme Belarmino acompanhou a chegada de três médicos brasileiros que vão trabalhar na cidade e fizeram medicina no exterior. Para praticar a profissão no país, eles precisariam fazer o Revalida, mas a última prova aplicada, que deveria ser anual, foi em 2017. Como o Mais Médicos não pedia o exame, essa era a chance de médicos brasileiros exercerem a medicina sem fazer a prova.

Bárbara Fernandes é de Campo Grande e se formou no Paraguai e Luana dos Santos é de Rondônia e estudou medicina na Bolívia. Recém-formadas, essa é a primeira vez que elas vão trabalhar na área.

“A gente não formou no Brasil, não tem jeito de revalidar, porque eles não dão essa chance. Não tem Revalida e nem expectativa de quando vai ter essa prova de novo. Pra gente, essa oportunidade é única e é agarrar com as unhas e dentes”, diz Luana. Informações do G1