Não é só de políticos que se deve exigir coerência. Seus eleitores não podem também atuar sob o princípio do “dois pesos, duas medidas” quando decisões ou acontecimentos afetam aqueles que escolheram para representantes, mesmo porque, ao contrário do que a história recente do Brasil ensina, o bom senso não recomenda que a posição dos primeiros em relação aos segundos seja baseada em clima de torcida, pelo qual o eleitor defende apaixonadamente aquele que elegeu como se não estivesse ali uma criatura falível como ela própria, capaz de cometer erros, inclusive, deliberadamente.
O episódio em que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, estabeleceu na terça-feira à noite, monocraticamente, que o monitoramento feito pelo COAF e outros órgãos de controle precisa de autorização judicial prévia provavelmente cachoalharia em insurreição, no dia de hoje, os defensores do presidente Jair Bolsonaro (PSL), caso o maior beneficiário da medida não fosse exatamente um dos “Zeros” dos seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), pego pelo Conselho de Administração Financeira com uma movimentação bancária suspeita que motivou a abertura de uma investigação contra ele.
O STF, assim como o Congresso, tantas vezes atacado como uma instituição dispensável, enfim, se redimiu por ter dado esta bela força ao filho de Bolsonaro? É claro que a decisão de Toffoli, dada, inclusive, a repercussão concreta contra o processo de combate à corrupção e de organizações criminosas de todo tipo, incluindo as políticas, pode e deve ser revista pelo colegiado do Supremo. Mesmo porque foi, segundo o noticiário de ontem, considerada um golpe de mestre dado pelo presidente da mair Corte judicial do país, que chegou a ganhar de jornais como a Folha a reputação de verdadeiro arquiteto político.
Na verdade, ele aproveitou a aflição vivida por um dos “Zeros” de Bolsonaro para tentar promover a revisão da jurisprudência que autorizou o uso de dados fornecidos pela Receita ou pelo Coaf ao MP sem autorização judicial, a qual passou a ser exigida por setores da Corte à medida que ministros do STF e do STJ descobriram terem sido alvo de apurações. Conforme lembrou a Folha ontem, familiares do própio Toffoli, por exemplo, e do ministro Gilmar Mendes tiveram relatórios sobre suas contas produzidos pelo Fisco e vazados à imprensa, embora o órgão, depois, tenha negado que eles fossem alvo de investigações formais.
Portanto, agindo, na verdade, em benefício próprio e da ala do STF que não tolera a autonomia do COAF ou da Receita, o presidente do Supremo conseguiu ao mesmo tempo prestar um belo serviço ao presidente da República, reforçando sua boa relação com ele e conseguindo também firmar-se, provavelmente, como voz a ser ouvida no processo de escolha do próximo chefe do Ministério Público Federal. Foi um caso típico de sopa no mel para poderosos. E quanto à sociedade e aos eleitores de Bolsonaro? Defendem a moralidade acima de tudo ou acham que o país deve pagar o preço de comprometer o combate ao crime organizado e à corrupção para salvar a pele do filho do presidente? Raul Monteiro/Política Livre