Foto: Afonso Santana/Arquivo pessoal

O acidente com a lancha Cavalo Marinho I, que virou na Baía de Todos-os-Santos no dia 24 de agosto de 2017, completa dois anos neste sábado (24). Enquanto a empresa responsável pela embarcação segue em operações, sobreviventes e familiares das 19 vítimas que morreram na tragédia continuam sem respostas da justiça, convivendo com a impunidade.

Na época do naufrágio, a Defensoria Pública chegou a ajuizar 46 ações contra a empresa CL Transportes Marítimos, sendo 41 delas na comarca de Itaparica e as outras cinco em Salvador. Hoje, 36 seguem sob a responsabilidade do órgão, já que cinco pessoas constituíram advogados particulares.

Uma das pessoas que acompanham o processo junto à Defensoria é Edivaldo Souza, que embarcou na Cavalo Marinho I após perder a lancha do horário anterior, que costumava pegar para ir ao trabalho, em Salvador.

“Eu entrei junto com a Defensoria Pública e o Ministério Público para poder acompanhar. Estou seguindo até hoje, aguardando. A gente tem um processo em que a última atualização foi em março desse ano”, conta Edivaldo.

Em valores, a Defensoria Pública pediu no processo de danos morais – para as vítimas sobreviventes que perderam bens no acidente – cerca de R$ 100 mil. Para os familiares das vítimas que morreram, os valores de pedido de indenização não foram divulgados.

Na comarca de Itaparica, a Defensoria conseguiu, após pedir pela 3ª vez, que os bens do dono da CL Transportes – Livio Garcia Galvão Júnior – fossem bloqueados, para garantir o pagamento das indenizações, além de um percentual de 5% da arrecadação da empresa. No entanto, a Defensoria alega que a CL Transportes não tem depositado os valores determinados em juízo.

Site da CL Transporte Marítimo — Foto: Arte G1

Algumas audiências de conciliação foram feitas, sob mediação da Defensoria Pública, mas a CL Transportes nunca participou das sessões. Segundo o órgão, a empresa alega que os valores indenizatórios são altos. Apesar disso, a CL Transportes também não apresentou uma contraproposta, apenas um pedido de suspensão das ações.

“Não tivemos nenhuma audiência em que a CL tivesse. Desde o acidente, eu nunca recebi nenhum tipo de pronunciamento vindo da empresa. Nunca, de ninguém da CL”, disse.

“Nada também sobre indenização. Na verdade, toda vez que tinha uma audiência de conciliação, eles não compareciam, então era só aquela coisa de ir lá e voltar, sem resultado. Estou aguardando até hoje”, confirma Edivaldo.

Enquanto a CL Transportes não comparece na Justiça, a maioria dos processos segue aguardando a audiência de instrução.

Fiscalização

A fiscalização do serviços das lanchas que fazem a travessia Salvador-Mar Grande é de competência da Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba).

De acordo com a Agerba, 16 fiscais atuam no sistema das lanchas diariamente, tanto em Salvador, quanto em Vera Cruz. O G1 questionou à agência se essas fiscalizações são regulares; se há relatórios a partir dessas fiscalizações; e se a Agerba toma providências com base nessas fiscalizações.

A agência não respondeu às perguntas, mas informou que acompanha toda a documentação, como licenças e comprovantes de vistorias exigidos pela Marinha, para que as embarcações possam compor a frota do sistema hidroviário.

Fiscalização do serviço das lanchas que fazem a travessia Salvador-Mar Grande compete à Agerba — Foto: Reprodução/TV Bahia

Em janeiro de 2018, cinco meses após o naufrágio, o inquérito da Marinha constatou que a embarcação naufragou após uma série de negligências e imprudências que poderiam ter sido evitadas com fiscalização.

Dentre as negligências detectadas pela Marinha – que são atribuídas ao proprietário da empresa e ao engenheiro – está a colocação de 400 kg de lastros (pesos usados para ajudar na capacidade de manobras) na lancha Cavalo Marinho I.

Os objetos de concreto foram deixados soltos abaixo da sala de comando e deslizaram dentro da lancha, contribuindo “negativamente para a capacidade de recuperação dinâmica da embarcação”.

Ainda de acordo com a Agerba, a fiscalização das embarcações e dos itens de segurança competem à Marinha, através da Capitania dos Portos. Quatro meses antes da tragédia, precisamente no dia 20 de abril de 2017, a lancha havia passado por uma vistoria.

No entanto, a embarcação passou por mudanças consideradas irregulares, que acabaram com a inserção dos lastros. A Marinha disse, na época, que um estudo de estabilização após inserção dos pesos deveria ter sido feito, mas não disse de quem era a competência da análise.

A Agerba também é ré no processo movido pela Defensoria Pública, mas – assim como a CL Transportes – nunca compareceu às audiências de conciliação. Conforme a Defensoria, a empresa alegou que não tem responsabilidade sobre o acidente, porque sua atribuição é fiscalizar a prestação do serviço.

Edivaldo Souza é uma das vítimas sobreviventes que acompanham processo na Justiça, junto à Defensoria Pública — Foto: Itana Alencar/G1 BA

No entanto, na réplica da Defensoria Pública à Justiça, entre as obrigações da Agerba, prevista por lei e decreto estadual, está a retenção das embarcações que não apresentem condições de segurança. Até este sábado (24), o processo segue aguardando decisão judicial.

Redução de passageiros

Número de passageiros que vão para Vera Cruz pelas lanchas diminuíram — Foto: Itana Alencar/G1 BA

Com o naufrágio da Cavalo Marinho I, a insegurança dos passageiros que fazem a travessia Salvador-Mar Grande veio à tona. Muitas pessoas que pegavam o transporte regularmente deixaram de usar o sistema por conta do acidente.

Entre essas pessoas está Magali Bispo Ferreira, moradora da Ilha de Itaparica, que perdeu a melhor amiga no acidente – Ivanilde Gomes da Silva, de 70 anos.

“Até hoje eu não consigo pegar lancha, fiquei traumatizada. Quando eu preciso ir para Salvador, eu mando alguém ir para mim. Fiquei com muito medo de atravessar o mar. Tem dois anos que eu não vou em Salvador. Não pego lancha de jeito nenhum, nem de ferry [boat] eu não consigo mais”, disse.

“Tudo que eu faço é aqui na ilha. Para atravessar, por enquanto, eu não consigo. Ivone era minha amiga para qualquer situação. Ela tinha 70 quando faleceu, mas era bem jovem, tinha uma cabeça bem para frente. Foi uma perda imensa para mim. Para quem conhecia ela mesmo, até hoje sente. Vai fazer dois anos e ainda dói”, completa.

Dados enviados ao G1 pela Socicam Náutica e Turismo, que administra o Terminal Náutico da Bahia e o Terminal de Vera Cruz, apontam que houve uma redução de 7,4% no número de passageiros entre 2017 e 2018.

De janeiro a dezembro de 2017, 1.006.411 usuários passaram pelo terminal. No mesmo período de 2018, a Socicam registrou 932.114 usuários: quase 74.300 pessoas deixaram de usar o serviço das lanchas.

Os dados de 2019 não foram fechados, mas a Socicam informou que houve diminuição no decorrer do ano. Com a diminuição do movimento, também há a diminuição do faturamento.

Hoje, para fazer a travessia Salvador-Mar Grande o usuário precisa desembolsar, de segunda a sábado, R$ 7,13 (sendo R$ 5,60 da passagem + R$ 1,53 da tarifa de utilização de terminais); e R$ 8,93 aos domingos e feriados (sendo R$ 7,40 da passagem + R$ 1,53 da tarifa de utilização de terminais).

O G1 também solicitou os dados relacionados a passageiros à Associação dos Transportadores Marítimos da Bahia (Astramab), que é responsável pelas travessias, mas não obteve resposta até esse sábado (24).

Cidade ‘marcada’

Praça principal de Mar Grande, que fica em Vera Cruz, na Bahia — Foto: Egi Santana/G1 BA

A diminuição do número de passageiros, no entanto, não tem impactado a economia e o turismo da cidade de Vera Cruz. É o que garante o secretário de Cultura do município, Luiz Henrique Amaral.

“Em termos de transporte, o terminal é fundamental para a atividade aqui de Mar Grande e Vera Cruz. É a grande porta de chegada, onde faz tudo acontecer. Do ponto de vista de movimentação na cidade, no comércio e no turismo, a gente não tem sentido nenhuma alteração significativa. Essa foi até uma composição que nos surpreendeu positivamente, já que isso vem acontecendo”, disse.

“O maior reflexo e maior resposta disso é a atividade comercial que continua acontecendo. Claro que, no primeiro momento, houve um impacto, mas que a gente bem breve sentiu uma reação contra isso”, explicou Luiz Henrique.

No dia 24 de agosto de 2017, quem não conhecia a cidade de Vera Cruz, na ilha de Itaparica, ficou conhecendo a partir dos jornais. Nacional e internacionalmente, a pequena cidade com população estimada em 42.706, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estampou manchetes no Brasil inteiro.

Para que a cidade não ficasse marcada, conhecida apenas pela tragédia, a prefeitura Vera Cruz adotou medidas estratégicas, como melhorias em infraestrutura e eventos para atrair turistas e movimentar a economia local.

“A gente acompanhou tudo muito de perto, por conta da nossa imagem. Todas as nossas aferições marcaram que o acidente não sinalizou, dentro do turismo e da imagem de Vera Cruz, algo que marcasse imagem da cidade negativamente. Muito pelo contrário: a reação foi positiva – respeitosamente, já que estamos falando de uma tragédia”, conta.

“Não houve impacto negativo quanto a isso. Pelo contrário, fizemos ações e eventos de grande porte, e elas contribuíram para transformar isso [a visibilidade] em algo positivo, sempre com todo respeito ao acontecimento e à representatividade emocional que isso carrega para cada um, obviamente”, argumentou. Informações do G1