Foto: Ricardo Stuckert

Três anos depois de a ex-presidente Dilma Rousseff deixar definitivamente o Palácio da Alvorada, Michel Temer, que foi de vice a apoiador do processo que tirou a petista da presidência, assumindo seu lugar, admitiu publicamente que o impeachment foi uma armação e usou pela primeira vez a palavra ‘golpe’. A declaração foi feita em uma entrevista ao programa Roda Viva, em 16 de setembro deste ano.

Na última semana, em entrevista à GloboNews, Temer confirmou que o golpe foi vingança de Eduardo Cunha contra o PT. E definiu como “um equívoco do PT” o gesto de não apoiar o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, contra sua cassação, para assim evitar que ele aceitasse o processo de impeachment. “Eu penso que se o PT tivesse votado com ele [Cunha] naquela comissão, ele estava com boa vontade para eliminar o impedimento”, afirmou.

Em entrevista exclusiva ao 247, Dilma contesta a tese de Temer de que poderia ter evitado o processo de impeachment caso o PT tivesse ficado do lado de Eduardo Cunha no processo que acabou cassando seu mandato por quebra de decoro. “Quem segue princípios éticos e se posiciona contrariamente a propostas despudoradas de barganha política nunca erra”, argumenta.

Dilma avalia ainda que, independentemente do processo contra Cunha, o golpe contra ela seria executado. “Um aspecto, todavia, merece ainda ser ressaltado. Hoje, analisando os fatos, creio que o processo de impeachment seria aberto de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. Era imprescindível para Eduardo Cunha e Temer que ele fosse aberto e prosseguisse”.

Diante das declarações recentes de Temer, Dilma questiona: “Se Cunha, como retaliação, autorizou a abertura do processo de impeachment contra mim, porque Michel Temer não o denunciou por desvio de poder?”. E lembra o verdadeiro motivo para lhe tirarem do poder, resgatando o diálogo entre Sérgio Machado e Romero Jucá: “estancar a sangria”. “Temer foi o maior beneficiário do golpe de 2016”, completa Dilma.

O ex-presidente Michel Temer, em entrevistas, tem dito que caso o PT tivesse rejeitado a abertura do processo da cassação de Eduardo Cunha na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, o processo de impeachment não teria sido aberto. A sra. acha que o PT errou ao proceder desse modo?

Quem segue princípios éticos e se posiciona contrariamente a propostas despudoradas de barganha política nunca erra. Não abrir um processo de cassação de um parlamentar com indícios claros que apontavam para a prática de corrupção seria algo inaceitável do ponto de vista ético. É isso o que Temer defendia com grande desfaçatez. Do mesmo modo, quem se curva à chantagem sempre pagará o preço pela sua fraqueza. O PT jamais poderia ter agido diferentemente pois quem se dispõe a práticas transformadoras tem que correr risco e não se curvar ao histórico pragmatismo oportunista e muitas vezes corrupto característico de uma certa “política realista”.

E o PT nasceu para transformar a política e não para se curvar diante de chantagens inomináveis.

Um aspecto, todavia, merece ainda ser ressaltado. Hoje, analisando os fatos, creio que o processo de impeachment seria aberto de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. Era imprescindível para Eduardo Cunha e Temer que ele fosse aberto e prosseguisse.

Aliás, a cada dia que passa fica evidente que Temer sempre soube quem era Eduardo Cunha. Não desconhecia os negócios aos quais ele se dedicava, porque deles se beneficiava e dele tornou-se aliado. Na verdade, quem dirigia o grupo político ao qual Temer integrava era Eduardo Cunha, primeiro porque conquistara a liderança do PMDB no legislativo federal e, depois, ao assumir a presidência da Câmara de Deputados. Nesse aspecto, é interessante a declaração do Senador Renan Calheiros, explicando por que não apoiava o governo Temer: “não posso apoiar um governo dirigido desde Curitiba”.

Na verdade, o PT não cedeu à extorsão de Eduardo Cunha porque sabia que quaisquer promessas de Cunha eram meras palavras ao vento, ele tinha profundo interesse no impeachment, pois buscava sustar as investigações do MPF. O PT, é verdade, conhecia a proverbial capacidade de chantagem do deputado, presidente da Câmara. Temer, por sua vez, não pode posar de espectador inocente dos acontecimentos, pois nesse momento estava integrado à articulação do golpe, construindo o programa golpista – “Ponte para o Futuro”.

Temer, de fato, naquele momento era estreito colaborador de Cunha,  investigado por corrupção. Àquela altura, final de 2015, o Ministério Público Federal já enviara para o STF as provas das suas contas secretas na Suíça. Já se sabia que Cunha mentira à CPI da Petrobras quando dissera que tais contas no exterior não eram suas. Eduardo Cunha já vinha sendo investigado há meses e a PGR o acusara de corrupção e lavagem de dinheiro a partir da colaboração com o MP suíço.

Então rememoremos. Eram públicas e notórias as notícias sobre a corrupção de Eduardo Cunha quando a Comissão de Ética da Câmara, até por isso, abriu processo para cassá-lo.

Assim, é estarrecedor que Michel Temer tenha a desfaçatez de vir a público dizer que o impeachment seria sustado se o PT não tivesse se recusado a dar a Cunha os votos para salvar seu mandato. Se Cunha, como retaliação, autorizou a abertura do processo de impeachment contra mim, porque Michel Temer não o denunciou por desvio de poder? Por que Temer teme tanto Eduardo Cunha ao forjar uma ridícula interpretação do “bem intencionado” Cunha versus o “insidioso PT”. O PT percebia que Cunha estava chantageando apenas para ganhar tempo, para obter os votos que o absolveriam na Comissão de Ética e, em seguida, continuar o processo de impeachment que Temer e Cunha supunham viabilizaria o “estancamento da sangria, com o STF e com tudo”. De fato, o PT não compactuou com essa jogada, não se submeteu à chantagem dos golpistas. É verdade que a partir daí o processo de impeachment começou a ser capitaneado por Eduardo Cunha e por ‘sua bancada’, pelo vice-presidente que era seu parceiro e se tornaria presidente sem votos, e pelos derrotados nas urnas. Tinham a convicção de que Temer precisava ser Presidente, daí o impeachment, para impedir que as acusações do MPF a Cunha prosperassem. Esse era, de fato, o processo que temiam, o judiciário. Isso, está claro nas gravações de Sérgio Machado com Romero Jucá, amplamente divulgadas pela imprensa. Simplesmente havia que “estancar a sangria”.

E o processo de impeachment foi iniciado com o pretexto que estava mais à mão: acusação de manobras contábeis para manter funcionando programas sociais do governo, que estavam ameaçados pela sabotagem política e econômica de parte do Congresso. A Justiça já conhecia os crimes dos quais Cunha era suspeito. Mesmo assim, o processo da PGR contra ele repousou preguiçosamente nas gavetas do Judiciário por mais de seis meses para não prejudicar o andamento do processo de impeachment. Os fatos são cristalinos: Temer foi o maior beneficiário do golpe de 2016.

Se é correta a afirmação do ex-presidente Temer em relação à abertura do processo de impeachment, isso não provaria que o processo de impeachment foi aberto e promovido ilegalmente?

Evidentemente que sim. Meus advogados demonstraram ao longo da minha defesa que essa conduta de Cunha era claramente ilegal, uma vez que qualificava a busca de um interesse pessoal no exercício do papel de presidente da Câmara. É o que os juristas chamam de “desvio de poder”. Usou o poder que tinha para alcançar um objetivo imoral e ilícito. Na prática, usou de seu poder para cometer um golpe de estado, aliado ao seu principal parceiro, o vice-presidente da República, e aos que não se conformavam com a derrota na eleição de 2014. O curioso é que no processo de impeachment se disse que isso não deveria analisado pelo Senado. Como pode? Uma ilegalidade em um processo que não poder ser analisada por aqueles que julgam? Como fica o Estado de Direito? E o que é pior: o STF disse que também não poderia apreciar essa questão no julgamento do meu mandado de segurança contra o impeachment, embora isso não tenha ainda transitado em julgado. Veja que curioso: uma ilegalidade que não pode ser apreciada por ninguém, num Estado de Direito. E agora essa ilegalidade é confessada de público pelo principal beneficiário do impeachment, Michel Temer. E depois há ainda quem diga que não foi um golpe…

A seu ver, qual o papel do ex-presidente Michel Temer no processo de impeachment? 

Além do que eu disse anteriormente, lembro ainda que Temer vinha já há algum tempo usando a imprensa e jornalistas amigos para confidenciar supostas queixas e reclamações, em tom de fofoca, e cartas pessoais convenientemente vazadas para forjar uma insatisfação e uma crise de relacionamento que não existiam entre nós. Este comportamento extravagante era parte de um processo de criação de uma narrativa de desgaste, por meio da qual ele pretendia justificar e dar veracidade a um futuro rompimento que amparasse a sua decisão de trair o governo ao qual pertencia, como vice-presidente e, com isto, tornar-se protagonista e beneficiário de um golpe. Ele era, sem dúvida, um parceiro político íntimo e afinado com Eduardo Cunha, formando uma dobradinha de conspiradores, fortemente apoiada no PSDB, em parte do PMDB, no baixo clero que havia sido cooptado por Cunha, por meio de verbas e privilégios, e na maioria da mídia. Temer não apenas participou do processo de impeachment que resultou no golpe de estado. Foi parte fundamental e decisiva do golpe, que teve no Congresso, como condutor, o seu confrade Eduardo Cunha. Quando diz que o PT podia ter evitado o impeachment se tivesse salvado Eduardo Cunha da cassação, está repetindo o que já havia afirmado depois do golpe, em entrevista à Band. Está, mais uma vez, afirmando, na verdade, que esperava que o PT e o Congresso tivessem sido lenientes e cúmplices de uma pessoa sobre a qual pesavam fortes suspeitas e sólidos indícios de corrupção, pelos quais ele foi condenado e está preso até hoje. Tenta criar um álibi para a sua traição.

Em que medida a situação de instabilidade política que o Brasil vive hoje tem alguma relação com o processo de impeachment?

Em todas as medidas que se possa considerar. A ascensão do neofascismo e do ultraneoliberalismo não brotou apenas de uma candidatura extravagante à presidência. É resultado direto de um processo de regressão política, cultural e econômica que foi aplicado de maneira metódica e sistemática. A imprensa,  parte do judiciário e do parlamento, parte do mercado adepto do “pato amarelo”, todos  juntos construíram o ambiente de ódio, intolerância e violência propício ao impeachment e fundamental para a emergência da extrema-direita. O golpe que me derrubou para colocar Temer no poder foi o passo inaugural do retrocesso. A partir daí todos os ataques à democracia se tornaram possíveis. Os neoliberais e os conservadores, sem dúvida, já não suportavam o fato de que, pelo voto, não tinham chance de voltar ao poder e realizar suas reformas contra a nação, os trabalhadores, a classe média, enfim, contra o povo brasileiro. Precisavam de uma ruptura institucional, da imposição de um  verdadeiro estado de exceção, necessitavam da perseguição política instrumentalizada pelo “lawfare”. O golpe de 2016 foi o caminho para tudo isso e para impor a precariedade do trabalho, a terceirização, o teto dos gastos que impacta a saúde e educação e a desnacionalização, com a venda das grandes estatais. Como perceberam que iam perder a eleição em 2018, condenaram e prenderam Lula e asseguraram a vitória de Bolsonaro e a chegada do neofascismo ao governo. Lembremos que o ambiente para o surgimento da extrema-direita no Brasil foi alimentado pela intolerância, pelo discurso de ódio e pela violência política. Tudo isso culminava num insensato e rancoroso discurso contra o PT, contra a esquerda, contra as pautas identitárias, contra a liberdade e contra os direitos humanos.

O neofascismo e o neoliberalismo atuam como irmãos siameses, corroendo política e economicamente o Brasil e são resultado direto do caldo de cultura criado pelo golpe de 2016. Brasil247