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Numa pasta vermelha que carrega nos braços há 11 anos, Deize Carvalho reúne fotos da exumação do corpo do filho, o atestado de óbito dele e uma ilustração feita por um cartunista que recria a cena do crime. Esses documentos fazem parte da papelada que ela guarda para provar que Andreu Carvalho foi espancado, torturado e morto aos 17 anos dentro do Departamento-Geral de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro (Degase), em janeiro de 2008.

Deize é uma vítima da violência, mas não aparece nas estatísticas. Estima-se que, todos os dias, até 782 pessoas sejam afetadas diretamente por homicídios no Brasil. É o que mostra um levantamento inédito feito, a pedido do G1pela cientista social Dayse Miranda, uma das autoras do livro “As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro” e pesquisadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Como se chegou a esse número

  • Segundo Dayse Miranda, cada assassinato afeta, em média, até cinco familiares e pessoas próximas à vítima.
  • O Brasil registrou 57.117 mortes violentas em 2018, segundo dados do Monitor da Violência.
  • Com a multiplicação, ao todo, 285.585 pessoas foram impactadas, entre familiares e pessoas próximas. A estimativa, portanto, é de 782 vítimas ocultas por dia.

Essas vítimas ocultas perdem seus familiares assassinados e têm a vida afetada de diversas formas. Dentre os impactos sofridos por elas, estão problemas de saúde, desestruturação familiar, dificuldades financeiras, estresse com trâmites burocráticos e transtornos psicológicos.

Desde a tragédia com o filho, Deize Carvalho toma remédios controlados e dedica grande parte do tempo a buscar justiça para que os culpados pela morte sejam punidos. Ela já sofreu maus-tratos em delegacia, no Instituto Médico-Legal (IML) e no Judiciário. Sua família se desestruturou. Mas Deize não tem a quem recorrer.

“Porque não mataram só o Andreu, mataram toda a família do Andreu junto. Quando tiraram a vida dele, tiraram também os sonhos dos irmãos, os meus sonhos”, lamenta ela. “Nesses 11 anos, adquiri doenças, porque nos matam psicologicamente e fisicamente também, quando matam nossos filhos.”

Cada assassinato afeta, em média, 5 familiares e pessoas próximas à vítima — Foto: Arte/G1

‘Leque de sensibilidade’

Dayse Miranda é pesquisadora na área de Violência e Políticas Públicas e atualmente coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GEPeSP/Uerj). De acordo com o estudo do qual é coautora, o que define o efeito do impacto no familiar é o laço afetivo com a vítima e a forma como o ente foi morto.

“Para considerar os efeitos dos impactos, você precisa avaliar primeiro o tipo de morte, porque estão diretamente relacionados. Quem é mais impactado? Claro que quem tem mais laços com a vítima, geralmente mãe, esposa, filhos. Não tem a ver com classe social, tem a ver com o grau de proximidade, que a gente chama de leque de sensibilidade”, explica a pesquisadora.

A dor de reconhecer o corpo

Pesquisadores acreditam que mulheres, crianças e pessoas que fazem o reconhecimento do corpo da vítima no IML estão mais propensas a desenvolver sintomas de sofrimento e traumas. “No estudo, vimos que as mulheres são mais impactadas porque percebem o sofrimento de outra forma”, apontou Dayse, que passou meses no IML do Rio de Janeiro durante a pesquisa.

“Já as pessoas que foram reconhecer o corpo ficam mais vulneráveis aos efeitos daquela morte violenta – geralmente quem reconhece é a mãe, a esposa. Os laços eram mais fortes, então a percepção da dor é muito maior.”

Um episódio chamou a atenção da pesquisadora. “Vimos o caso de uma vítima que teve os ossos amassados, e a irmã foi reconhecer o corpo. No IML, colocaram os ossos dentro de um saco em cima de uma mesa e deram para ela ver. Por que fizeram isso?”, questiona.

“Porque não aprenderam que ali [no IML], para ver o corpo, tinha uma vítima em sofrimento, uma vítima emocionalmente impactada. O poder público não entende, os agentes que operam nas instituições de segurança não entendem e o estado não está preparado.”

A psicóloga Daniella Harth, autora do artigo “Repercussões do homicídio em família das vítimas: Uma revisão da literatura” e mestre e doutoranda em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ressalta os impactos na saúde de quem fica.

“Todos esses problemas enfrentados no IML, nas delegacias, na Justiça – isso tudo contribui para os problemas de saúde. A coisa do reconhecimento do corpo, às vezes desfigurado, deixa marcas, é aquela coisa do ‘meu filho morto como um cachorro na rua'”, aponta Daniella.

Dayse Miranda acrescenta: “82% das pessoas que viram o corpo disseram que tiveram seu cotidiano alterado, relataram que não conseguiram mais dormir, passaram a ter tremores no corpo, suor repentino, nervosismo, ansiedade e flashbacks”. A especialista indica ainda que o número de homicídios no país é alto e que nem sempre tem vaga para todos no IML, nos cemitérios.

“Tem a demora para conseguir liberação do corpo e para conseguir a sepultura. O trâmite para resolver a questão do enterro é moroso, a pessoa sofre com a morte e com o fechamento daquele processo pós-morte”, comenta Dayse, que também cita ainda a demora da Justiça, o preconceito, o julgamento alheio e a falta de rede de apoio.

“As pessoas ainda têm de lidar com o preconceito social que o homicídio do ente traz. E tem também a questão das crianças. Dos 4 aos 13 anos, ninguém dá oportunidade para aquela criança que perdeu alguém se tratar, falar da perda. Aí, viram jovens inseguros, emocionalmente afetados, e isso implica consequências futuras.”

Vítimas na população negra

Ciente das dificuldades para quantificar os sobreviventes no Brasil, a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Fernanda Lira está desenvolvendo uma metodologia para calcular quantas pessoas são afetadas pelos homicídios.

Na primeira etapa do trabalho, a pesquisadora se concentrou na população negra, que é o grupo com maior representatividade nos dados de homicídio e no qual a tendência tem sido de aumento, ao contrário da população branca. Fernanda vai continuar a desenvolver o trabalho e expandir o alcance para toda a população.

O estudo mostrou que, em 2010, os 35.480 homicídios de negros no país impactaram 122.761 sobreviventes. Fernanda Lira afirma que o número é ainda maior, pois só considerou aqueles que moram no mesmo local que a vítima.

“Foi uma decisão nossa calcular inicialmente uma estimativa do que denominamos a quantidade mínima de sobreviventes, pois na nossa percepção o mínimo de pessoas impactadas pelo homicídio de alguém são aquelas que residem na mesma moradia”, explica a pesquisadora.

“Nesse sentido, se uma mãe que entra em depressão, em uma família que perde o provedor, residir no mesmo domicílio, então foi contabilizada. Caso resida em outro domicílio, não foi inserida em nossa metodologia. Por este motivo, concluímos que esses valores encontrados em nossa estimativa sub-representa o valor total de sobreviventes. Afinal, as pessoas afetadas vão além daquelas que moravam no mesmo domicílio da vítima.”

Políticas públicas e rede de apoio

Não raro, as vítimas indiretas dos homicídios sofrem caladas, sem ter a quem procurar. Muitas delas também não gostam de falar sobre o assunto, como relatado pelas especialistas Dayse Miranda e Daniella Harth, o que dificulta também que essas pessoas tenham maior visibilidade.

A psicóloga Daniella Harth ressalta que, no levantamento de seu estudo, não tomou conhecimento de políticas públicas efetivas para tratar dessas vítimas ocultas da violência. “Não existe uma política sistemática de cuidado desses familiares. Não encontrei nenhuma estrutura estatal, política oficial de apoio e acolhimento. O que encontrei foram associações de familiares de vítimas. O homicídio é um tema estigmatizado, a família não fala muito”, diz.

A maioria dos familiares que sofreram uma perda violenta não conta com ajuda psicológica. Muitos nem sequer procuram o serviço, explicam especialistas. Segundo a pesquisadora Dayse Miranda, essa vítimas ocultas ficam solitárias.

“Alguns preferem o conforto da igreja ou ficam sozinhos mesmo, porque tem o sentimento do medo, da vergonha, da exposição. Confiar nas instituições de segurança e na Justiça faz toda diferença, mas isso não acontece”, avalia.
“Deveria haver campanhas de incentivos à confiança interpessoal. Não acho que o Estado tem que dar tudo, não. Mas ele precisa dar conta do pleno funcionamento de suas instituições.”

Para ela, humanizar o processo da perda pode reduzir as chances de novas pessoas morrerem em decorrência de problemas após uma perda brutal. “O poder público precisa entender que deve existir um trabalho de prevenção, para evitar os homicídios, e também para realizar um trabalho com os que ficam, porque nossos estudos mostram que violência adoece. Precisamos acabar com esse silêncio.” Informações do G1