Encarando os inimigos de frente, protegendo seu povo e suas terras, mantendo a agricultura e a economia girando. A participação das mulheres nos 17 meses – de fevereiro de 1822 a julho de 1823 – de batalhas pela Independência do Brasil na Bahia não se restringe aos nomes que marcaram a história. Por toda província da Bahia, as mulheres anônimas contribuíram para a causa da independência e, assim como os homens, foram fundamentais para que nós, hoje, possamos ter o que comemorar em todo 2 de Julho.

Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica são alguns dos grandes personagens que marcaram a história da independência do Brasil na Bahia, mas a importância dessas mulheres, explica o professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e coordenador do grupo de pesquisa ‘O Som do Lugar e o Mundo’, Milton Moura, também está justamente em recapitular e arrematar todas aquelas que contribuíram para a vitória dos baianos e brasileiros. Afinal, o que definiu a guerra foi a capacidade de provisão alimentar, pois os portugueses não tinham comida em Salvador, aponta o professor.

“Os soldados organizados por líderes locais como o Periquitão, avô de Castro Alves, que formou o batalhão dos Periquitos, e mais tarde pelo mercenário francês Pierre Labatut e pelo Coronel Lima e Silva, conseguiram a vitória porque asseguraram a alimentação das suas tropas, assim como bloquearam o acesso dos portugueses à comida que havia no Recôncavo e no Baixo Sul. As mulheres participaram de tudo isso, inclusive no transporte dessa comida. A comemoração mais expressiva disso é o folguedo chamado ‘As Caretas do Mingau’, em Saubara, no dia 2 de Julho”, explica.

Conta-se que essas mulheres, sob a liderança de uma mulher chamada Brígida, disfarçavam-se durante a noite para levar comida aos combatentes escondidos para guarnecer a entrada do Rio Paraguaçu. “O interessante é que uma das amigas da turma liderada por Maria Felipa chamava-se Brígida, e o nome da Cabocla de Saubara também é Brígida”, conta Milton Moura. Maria Felipa, por sua vez, apesar da propagação atual de sua existência, foi um vulto desconhecido por décadas.

Isso, claro, até a descoberta de sua relevância a partir do cotejamento de elementos nas obras de dois itaparicanos: o romancista Xavier Marques (1861-1942), e o cronista e historiador Ubaldo Osório (1883-1974), avô do romancista João Ubaldo Ribeiro. Assim como, é claro, a partir das histórias que permaneceram na memória popular da Ilha de Itaparica. Maria Felipa era negra, pobre e analfabeta, como consta no único documento escrito que até agora conhecemos sobre ela, aponta o professor.

“A tradição diz que ela era marisqueira e que liderou um grupo de mulheres que participaram da defesa da Ilha de Itaparica, lutando lado a lado com os soldados e os outros guerreiros, inclusive pescadores e roceiros. Essas histórias despertaram a atenção do público nos últimos 30 anos e têm contribuído para reforçar a importância de se considerar a participação da mulher na guerra de Independência”, explica Milton Moura.

Maria Quitéria

Outra heroína marcante é Maria Quitéria, que por si só e seus feitos, é uma evidência de como o processo de Independência na Bahia possui episódios e personalidades que o tornam único. “Ela sabia montar, atirar, caçar e plantar, mas isso era diferente de guerrear. Ouvindo a propaganda independentista que corria de sítio em sítio, de feira em feira, de povoado em povoado, ela se empolgou, se comoveu e decidiu lutar, tomando para si as roupas do cunhado e se alistando como Soldado Medeiros”, conta Milton Moura.

E são histórias e registros desse tipo – e tantos outros – que melhor mostram o quanto “a Independência do Brasil na Bahia foi um processo singular, dramático e épico, diferente de todos os outros estados”, salienta o jornalista, pesquisador e membro da comissão de cultura do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), Jorge Ramos. “Foi uma guerra que durou mais de um ano, e ainda que os acontecimentos de 25 de junho de 1822 em Cachoeira sejam considerados o estopim da fase armada da Independência, desde a morte de Joana Angélica, em fevereiro daquele mesmo ano, já haviam conflitos acontecendo”, aponta o pesquisador.

Protetora, mas também uma vítima da guerra, Joana Angélica se tornou uma mártir ao se pôr à frente dos portões do Convento da Lapa para impedir que soldados portugueses invadissem aquele local que homens não podiam entrar, pois era de freiras enclausuradas. Joana Angélica, que estava com 60 anos na época, recebeu golpes de baioneta dos soldados e sua morte estimulou a revolta dos brasileiros.

A atual abadessa do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição – posição que Joana Angélica ocupava -, a Madre Lindinalva de Maria, aponta que tal sacrifício feito por ela em 1822, pela perspectiva humana, não tem explicação. “A capacidade de dar a vida pelo outro é um gesto grandioso e não existem palavras que o definam. E para além disso, nos faz pensar nos tantos outros gestos menores que ela fez em vida. Ela tinha uma vida que, por si só, era entregue unicamente com a finalidade de viver para Deus, um Deus ao qual entregamos a vida e que é representado pelas pe.

As anônimas das batalhas

Muitas ainda são as mulheres anônimas na história da Independência do Brasil na Bahia, mas os estudos tem nos feito tomar conhecimento dessas mulheres, afirma a professora de história da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), titular aposentada da Universidade Federal da Bahia (Ufba), e docente do Programa de Pós-Graduação em História e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Ufba, Lina Aras.

Há exemplos dos estudos sobre as Caretas do Mingau feito por Vanessa Pereira de Almeida (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, 2017) e o estudo em desenvolvimento sobre as mulheres presentes nas lutas de Itaparica de Patrícia Verônica Pereira dos Santos (Ufba).

“Sobre o apagamento de Maria Felipa em especial, é importante dizer que, por muito tempo, a história foi escrita por um vencedor, sujeito universal, branco e de elite. Dessa forma, ao trazer para linha de frente da história personagens negras e negros, estamos realizando um trabalho de visibilidade daquelas populações invisibilizadas, assim como fora a população indígena, e fazendo justiça ao papel da História, que é construída por todas as pessoas”, afirma a docente, que acredita que por isso o Bicentenário se constitui em um estímulo para o desenvolvimento de novas pesquisas, mesmo que esse seja um tema recorrente no nosso cotidiano.

“A disponibilização de documentos, nossas abordagens metodológicas e o olhar mais prospectivo tem contribuído para que nos próximos anos tenhamos mais pesquisas e estudos que trarão outros olhares sobre o tema. No momento, destacam-se a realização de um grande número de eventos que poderão ser transformados em publicações e essas que já se encontram no prelo. Chamo a atenção para os estudos sobre o Dois de Julho nas salas de aulas, o que tem estimulado docentes e discentes a se comprometerem com a luta da Independência do Brasil na Bahia e o reforço das nossas identidades”, afirma. A Tarde