(Arisson Marinho)

As noites e madrugadas não têm sido as mesmas para os moradores dos bairros periféricos de Salvador. Neste último mês, ao menos onze tiroteios foram noticiados pelo Correio em diferentes bairros de Salvador, o que já fez de novembro o mês mais violento da pandemia na capital, somando 127 pessoas assassinadas, conforme dados dos boletins diários da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), compilados pelo jornal. Esse número, inclusive, pode ser muito maior, já que não constam nesses boletins as seis mortes durante operação policial no bairro de Águas Claras.

A SSP vem declarando que informações iniciais apontam que a maioria dessas vítimas na capital têm envolvimento com a disputa pelo tráfico de drogas. O Atlas da Violência 2020 mostrou que a Bahia é o estado com o maior número absoluto de homicídios no país pelo quarto ano consecutivo e — em 2018, ano do levantamento — 90% dos mortos foram pessoas negras, quase todas jovens.

Era uma sexta-feira, 20 de novembro, dia da Consciência Negra, quando 14 pessoas foram assassinadas na capital. Foi o dia mais sangrento do mês. Nesta data, foi registrado 11% do total de óbitos de novembro. Os bairros de São Caetano, São Cristóvão, Lobato e Águas Claras foram os que mais sofreram com assassinatos e constantes trocas de tiros.

Essas supostas disputas entre grupos criminosos têm efeito direto não só na rotina dos bairros, mas também nos presídios da capital, segundo observa o presidente do Sindicato dos Servidores Penitenciários da Bahia (Sinspeb), Reivon Pimentel.

“O clima está tenso e é mais por conta do crescimento das facções criminosas. Até então, nós só tínhamos facções locais e hoje já temos facções organizadas do Rio de Janeiro [Comando Vermelho] e São Paulo [PCC] na maioria das unidades prisionais da Bahia. A chegada de membros dessas facções a Salvador tem deixado a cidade tensa por conta das guerras. O Estado da Bahia não se preparou para fazer frente ao crime organizado e vem agindo de forma amadora”, acredita ele.

As duas maiores facções soteropolitanas, o Bonde do Maluco (BDM) e o Comando da Paz (CP), se aliaram ao PCC e ao CV, respectivamente. Uma série de operações policiais e ocupações militares se desencadeou na capital nas duas últimas semanas como resposta aos supostos ataques criminosos dessas alianças em disputa. No dia 17 de novembro houve a primeira grande investida da SSP, que resultou na morte do traficante Babalu, líder da facção Bonde do Maluco, em Pernambués. Em vídeos que circulam nas redes sociais, traficantes rivais até soltaram fogos de artifício comemorando a morte dele.

Sem corridas: motoristas evitam áreas em conflito

Preferindo ter a identidade preservada, um motorista de aplicativo contou à reportagem que tem cancelado as corridas com destino à região da Av. Suburbana e São Caetano devido às ocorrências de conflito nestas regiões. Outro dia, quando, por ventura, pegou uma corrida para Plataforma, fez diversas perguntas ao passageiro e pediu que ele checasse com um familiar qual era o clima no bairro para que pudessem chegar em segurança.

“Claro que a gente quer trabalhar para todo mundo. Somos muitos motoristas e não temos como ficar todos concentrados em só pegar corrida em bairro de classe média. Nós passamos por uma grande dificuldade por causa da pandemia e estamos impossibilitados de oferecer um serviço completo por falta de segurança. É muito complicado. A gente sai de casa pedindo a Deus para nos levar e nos trazer. O problema não é nem alguém me roubar, é a gente entrar no bairro e tomar uma bala perdida”, relata.

Segundo ele, os profissionais até andam desenvolvendo estratégias próprias para continuar transportando pessoas para esses locais. O motorista conta que os colegas têm cuidado uns dos outros monitorando os trajetos pelo WhatsApp. Quando um deles pega uma corrida para uma região em que avalia ser de risco, avisa logo no grupo. “Quando a gente sabe que um colega está indo para a Av. Suburbana, ou um bairro que requer atenção redobrada, fica todo mundo apreensivo perguntando Fulano já saiu de tal lugar?”, conta.

CONFIRA O MAPA E CRONOLOGIA DOS CONFLITOS:

Comércio fechado

Um comerciante de Águas Claras contou, também sob anonimato, que os conflitos têm acontecido mais no fim de linha e, mesmo morando mais acima, ele não fica imune aos efeitos desse clima tenso. O morador diz que as pessoas têm deixado de circular na rua de manhãzinha por receio de receber bala perdida, o que, no fim das contas, é ruim para o seu negócio porque reduz a clientela.

“O comércio fechou na última semana e quem precisou comprar algo não pode por causa desse risco. Queremos que a polícia faça o papel dela, a população tem que apoiar, mas a gente não aceita truculência. A polícia tem que colocar inteligência na rua para fazer operações acertadas e inocentes não venham a ser afetados”, diz ele.

Outro morador de Águas Claras está um tanto desesperançoso quanto ao papel das instituições públicas no combate ao crime. “Tiro aqui não é novidade. O problema é que as pessoas que fazem a gestão não sentem na pele o que nós vivemos. Maurício Barbosa, o secretário estadual de segurança, não vive isso. Às vezes, a gente perde a sensibilidade. Quando eu era adolescente e via um corpo no chão, aquilo me deixava mal por semanas, eu ficava triste como as pessoas não ligavam. Hoje eu me vejo fazendo o que eu julgava”, lamenta.

Nas Cajazeiras, onde oito foram mortos, um morador relata que dois eram seus conhecidos. “Sou mais um morador que anda assustado, olhando para os quatro lados todos os dias para poder ir ao trabalho. Cajazeiras tem passado um sufoco. O bairro já tem uma companhia da Polícia Militar, queremos mais? Para quê? Precisamos de estratégia, do serviço de inteligência”, completa.

Posicionamento

O Correio solicitou uma entrevista com um porta-voz da SSP-BA para tentar entender o que, afinal, está havendo na cidade. Por telefone, o diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Marcelo Sansão, afirmou que as polícias estão acompanhando todos os grupos criminosos em disputa e suas respectivas áreas de atuação, “e que a resposta será dada”. A reportagem perguntou ao diretor quais bairros tiveram o policiamento reforçado na capital em função destes conflitos armados, mas não teve resposta. O diretor também não disse quais são as facções que estão em disputa.

“Existe um movimento de preocupação com a entrada de facções externas da Bahia, mas nós não somos Rio e São Paulo. Não vamos deixar que grupos externos criem uma situação que ocasione realidades que não são as nossas. A gente reporta como um fator negativo a soltura de lideranças do tráfico. Houve uma piora no quadro, milhares de presos foram liberados. Existe um problema legal e nosso papel é ser persistente e vamos prender e recuperar onde [os criminosos] estiverem, onde estiverem vamos buscar”, afirmou Sansão.

Analistas da segurança pública

Especialista em administração de sistema prisional e professor de Gestão Pública do Insper, Sandro Cabral prefere não afirmar que exista uma causalidade entre a soltura de presos por causa da pandemia e essa repentina explosão de casos de tiroteios. “De toda sorte, não se pode descartar”, diz. O professor cita que algumas facções do Rio de Janeiro e São Paulo começaram a ter tentáculos no país e é comum que essas organizações criminosas de fora se aliem com o crime organizado local, que já conhecem o mercado, as demandas e os conflitos.

Em Salvador, pichações feitas nos bairros de Santo Inácio e Nordeste de Amaralina têm indicado que a facção local Comando da Paz (CP) se aliou ao grupo carioca Comando Vermelho (CV). Há dois meses, um dos traficantes mais agressivos do Rio de Janeiro foi preso aqui num hotel da Pituba e com ele foram achados mais de R$ 61 mil em dinheiro. Essa chegada de grupos poderosos de fora pode, inclusive, motivar novos conflitos por disputa de territórios de atuação, aponta Cabral. Segundo a SSP, essa vinda não passa de “boato”.

O professor lembra que a pandemia gerou uma diminuição das atividades de todas as organizações, inclusive do próprio tráfico de drogas e, como esse mercado ilegal sofreu baixas de recursos devido as apreensões, abriu-se espaço para a tomada de pontos de facções rivais. “E boa parte das mortes pode-se mesmo colocar na conta disso”, adianta. “É final de ano, tem mais dinheiro circulando, então tem uma série de fatores que começam a influenciar”, soma ele.

Para tratar desse problema público, o especialista reitera que a melhor saída é mesmo agir com menos violência e mais inteligência, com trocas contínuas de informações entre as forças policiais estaduais e federais. “A escalada violenta por parte da polícia não parece ser o caminho. Operações boas são as que, sem dar um tiro, desbaratam uma quadrilha inteira. E isso requer um trabalho de investigação, de formiguinha, de avaliar a dinâmica do crime, colher informações. Sou morador de Salvador e tenho acompanhado com pesar essas mortes e o mês ainda não acabou”, completa.

O coordenador do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Lassos/Ufba), Luiz Claudio Lourenço, aponta que os moradores das áreas de disputa de facções do tráfico de drogas vivem em meio a um fogo cruzado.

“O risco para a pessoa é diário. No meio dos conflitos entre os grupos, as pessoas tentam encontrar formas de sobreviver no local ou sair dali. As operações também acabam perturbando a vida do morador. Existe toda uma dinâmica violenta associada ao comércio de drogas e isso é agravado com a violência do estado. Nesse campo de batalha, o morador pode ser vitimado”, afirmou.

MORTOS POR MÊS EM SALVADOR (2020):
Dados: Boletins SSP-BA
Março – 106
Abril – 122
Maio – 79
Junho – 71
Julho – 66
Agosto – 73
Setembro – 81
Outubro – 106
Novembro – 127

(Informações do Correio da Bahia)