Diante da pergunta “Por que Salvador é tão musical?”, Paulo Costa Lima, premiado compositor e estudioso da música, propõe uma nova questão. Será que ela é mesmo? Costa Lima, então, emenda uma lista de 15 fatores anotados em um caderninho e que foram trabalhados por ele no livro Cidade da Música da Bahia, um compêndio de artigos. Os tópicos passam pela força da capoeira, as sonoridades da percussão, a força do Candomblé, a vanguarda universitária, a tropicália, o modo de falar, a esculhambação…
“Então, eu não acho que a gente possa dizer isso de outros lugares…”, arremata. Então, sim, Salvador é mesmo musical. E aí tem um por que que se destaca. Em 475 anos de cidade, algo da repressão colonial e escravocrata, que se ressignifica diariamente em novas formas de opressão, ressoa em um desejo de poder. De poder ser – através do espetáculo, do palco, da música.
“A Bahia é tão musical porque a música se transformou, entre nós, nessa alternativa de poder… de poder ser através do espetáculo. Ou seja, temos que falar dos processos históricos que permitiram que essas heranças fossem potencializadas e construíssem tudo isso”, explica o professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia.
Não há possibilidade, por exemplo, da música local se tornar o que é sem o Candomblé, religião que nasceu na Bahia – pesquisadores ainda divergem se em Salvador ou Cachoeira. “Nós fomos civilizados por essa música que foi chamada não civilizada”, afirma Costa Lima.
A Bahia, o estado que às vezes se sobrepõe ao nome cidade de Salvador, mostra que a capital baiana não está sozinha no jogo musical. “Não estamos falando de uma cidade só, mas de uma cidade com o Recôncavo”, reflete.
Na busca por desvendar esse jogo sonoro que escuta e apresenta o território, o músico soteropolitano, como um hermeneuta do som, descontrói mistérios e aponta origens daquilo que pode até ser confudido, equivocadamente, por “vocação especial”.
No Instagram, canal em que ele compartilha segredos desvendados, dá para sentir algumas coisas. Entre elas, por que os tempos da música “Expresso 2222”, de Gilberto Gil, nos fazem sentir em um trem suspenso.
Por que Salvador é mesmo tão musical?
Antes de mergulhar na pergunta, a gente tem que confirmar: a Bahia é tão musical quanto a gente diz? E aí eu listei aqui 15 coisas, para tentar responder. Essa rede de percussionistas, as ideias que escoam dessa rede, a máquina ambulante de som (trio elétrico), a vanguarda que está na universidade, a tropicália, a capoeira, com o berimbau, que vai gerar uma capacidade de divulgação internacional enorme, a ressignificação do rock com Raul Seixas, a criação dos blocos afro, cruzamento de samba com reggae, a axé music, a reinvenção da sofrência, a potencialização do pagode.
Então, imagine cada coisa dessa… Então, não acho que a gente possa dizer isso de outros lugares. A nossa formação vem de todos esses processos. Se vamos buscar uma síntese disso é: a festa aparece como resistência. A gente vive tão no meio disso que às vezes não se dá conta, de que, por exemplo, a de capoeira está na nossa música e a música está na capoeira. Então, a nossa formação toda vem de todos esses processos. Se vamos buscar uma síntese disso é: a festa como resistência, a comunidade, o corpo e o espetáculo.
E por que, então, tudo isso?
A Bahia é tão musical porque a música se transformou, entre nós, uma alternativa de poder… de poder ser através do espetáculo, da música. Ou seja, não é porque a Bahia tem uma vocação especial para a música, trata-se de reconhecer quais heranças históricas foram potencializadas e construíssem tudo isso, esse espaço de poder ser.
No processo de escrever o artigo para esse livro Cidade da Música da Bahia, encontrei um artigo de Gregório de Matos, de 1680. Ele faz o poema em formar de petição ao então governador. Diz assim: “A um general capital, suplica a irmandade preta, pede que se lhe permita, ir ao alarde”. O que quer dizer? O que é esse alarde?
Seja lá o que for, continuamos a conviver com ele até hoje. Já havia uma percepção, da irmandade grega, de que esse é um espaço possível: nós queremos ir ao alarde. Acho que esse poema mostra que num lugar absolutamente dominado por escravidão, colonialismo, há um espaço de identidade, que é isso que a irmandade preta quer e o poeta defende.
A Bahia é tão musical ou Salvador que é tão musical?
Essa é uma pergunta muito boa, estava pensando nisso mais cedo. Será que Caetano Veloso faria sucesso no século 19? A resposta seria não, de jeito nenhum. Para vir de Santo Amaro para cá, de início, seria difícil. Quero dizer, com isso, que esse jogo musical todo que estamos falando não é um jogo de uma cidade só, mas de uma cidade com outras cidades do Recôncavo, com essas populações que vinham aqui para as feiras. A gente não fala de uma cidade sozinha. Agora, isso é muito diferente de Correntina, de Juazeiro.
Sem o candomblé, criado aqui, haveria possibilidade de sermos assim tão musicais?
Não teria nada. Essa é a matriz de conhecimento dessa música de qualidade que nos civiliza. Nós fomos civilizados por essa música que foi chamada não civilizada. Vamos ser civilizados pela música, pela ética, porque só quem é oprimido pode ensinar isso.
Falar da Bahia musical é falar desse grande programa de produção de conhecimento que acontece em ‘N’ lugares, sem uma integração visível, mas integrado pelas heranças comuns. No caso da Bahia, inclusive, acho que precisava de um anteparo, de apoio, para que os projetos se sentissem parte de algo. Não é algo que esteja resolvido e é o que me faz perguntar sobre o futuro disso, principalmente em um momento em que há um movimento que demoniza essa herança. Estou falando do pensamento neopentecostal.
E qual é o espaço do sagrado na nossa música?
O fato de a música nem precisar de palavras dá um poder grande a ela, ela aciona regiões do não falável. Por outro lado, aí já olhando para a psicanálise, é como se a música nos ouvisse. Quando você se apaixona por uma música é porque aquela música ouviu algo em você que você nem sabia o que era. Uma possivel definição, partindo do inconsciente psicanalítico, é essa: a música me ouve. Não só você ouve a música.
O que ela está escutando de nós?
Quero sambar [risos]. Meu corpo responde a isso. Já cheguei a questionar o porquê.
E qual é o som da cidade que mais aparece na música?
Escuto falas. Esse é um ponto muito importante. A relação com a fala como relação performática. Cada comentário de um programa de comentário de futebol é um show [risos]. A Yeda Castro [doutora em línguas africanas] faz uma pergunta importante: por que o inglês na Jamaica quando se chocou com as línguas africanas teve que dar origem a uma nova língua, e por que na Bahia não surgiu uma outra língua?
A resposta dela é que essas línguas africanas invadiram e mudaram o português. Nós, falantes, falamos o que resulta desse processo de hibridação. Se isso acontece com a fala, acontece com a música também, é claro. Isso faz de cada falante um performer. Cada falante na Bahia é convidado a isso. Me ligo muito às formas de falar e ouço música.
A Yeda explica que as línguas africanas valorizam mais as vogais que as consoantes. Já o português de Portugal privilegia as consoantes. Aqui, o português teve que ser aberto. A gente não fala “as meninas”, com S marcado, nós abrimos tudo: “Ar menina”. Foram coisas que surgiram de um embate, uma construção musical da língua como forma de afirmação de poder, poder ser.
Então existe algo da nossa fala que é musical por si?
Me parece que nossa forma de falar é nossa grande escola. Em cada espaço de liberdade possível, o que é ensinado é: brilhe, faça isso, seja você. Isso traz uma atitude. O poeta Antônio Brasileiro fez um poema, que acho que tem tudo a ver com a Bahia, que diz: A verdade é uma só: são muitas. Isso na Bahia é especialmente verdade.
Por isso, que precisamos falar principalmente em educação. Eu não concebo escolas que não sejam um projeto cultural. Em qualquer lugar, mas aqui de uma maneira muito específica. E, muitas vezes você não percebe essa consciência, mesmo nas escolas. Às vezes, sonho que todas as escolas poderiam ter grupo de música, percussão, cinema… mas o que vejo, ouvindo pessoas, de muitos jovens desanimados, sem estímulo, sem perspectivas.
Você faz um caminho mostrando como e o quê as músicas vão comunicando, inclusive através da forma. O que as músicas baianas comunicam?
As músicas baianas, na medida em que trazem em si as marcas do tecido cultural de onde nasceram, constituem uma experiência de baianidade. É mais do que comunicar, é envolver o ouvinte nessa experiência. O ‘Umbigão da Baleia’ de Riachão, que não faz nenhum esforço de representação da Bahia é Bahia até dizer chega, em sua construção anárquica do interesse pelo umbigo dos outros… [risos].
O mesmo pode ser dito de várias dezenas e talvez centenas de músicas – elas trazem as marcas da comunidade de ouvintes a que se dirigem (mesmo quando estouram todas as barreiras e viram nacionais ou internacionais). É o Tchan é um exemplo desse. Atrás do Trio Elétrico de Caetano é outro. Filhos de Gandhy de Gilberto Gil. É D’Oxum’ de Gerônimo. Chiclete com Banana.
Ou seja, se há um lado ativo que se organiza um pouco em torno da arrelia, e da esculhambação há outro pólo que se organiza em torno da dramaticidade, do amor, da tristeza e da saudade e por aí vai… Portanto, não creio que se possa afirmar que as canções baianas apresentam tais e quais características harmônicas, rítmicas ou melódicas que as tornam baianas… E olha que os ritmos são marcadores diretos de baianidade. Mas, podemos citar vários exemplos de músicas tipicamente baianas que não passam pela questão do ritmo
Existe música baiana, enquanto gênero?
Vou dizer uma coisa: vários de nós compositores temos peças que são tocadas pelo Brasil e que quando as pessoas ouvem dizem: ‘essa música é baiana’. E é música de vanguarda, na verdade [risos]. Então, não é simples de responder, mas tem coisas que, pelo jeitão, só poderiam ter sido feitas aqui. É preciso pesquisar mais sobre o que é esse jeitão. Já tentei capturar o que é isso. Há um vetor importante que é a esculhambação anárquica e do outro lado tem a sofrência. Não sei, por exemplo, se as músicas dos astros da sofrência são identificadas como claramente baianas. Mas, quando isso surgiu, tinha um jeitão muito claro de Simões Filhos [risos].
Salvador é mesmo uma cidade aberta à diversidade musical, ou ela se restringe nela mesma?
Nós não podemos negar que todos os lugares do mundo sofrem uma homogeneização enorme, o que é mais uma razão para reforçar que é preciso investir nesse grande programa de conhecimento. É uma homogeneização também das formas de construções de identidade, na medida em que essas identidades podem ser quantificadas por número de seguidores. Existe um processo do capitalismo tardio, de desenraizar. O que vou fazer com isso? Não me parece fora do previsível que a manutenção da diversidade seja um desafio, por isso tenho falado muito disso como política [cultural]. Correio da Bahia