Marina Silva/ Arquivo CORREIO

Estratégia que prioriza o confronto e vitimiza principalmente pessoas negras e de periferia. É assim que especialistas analisam a forma com que o Estado age quando o assunto é segurança pública. Método este que faz com que a Bahia esteja no topo do ranking de letalidade em ações policiais. Das 2.061 operações realizadas no estado entre julho de 2020 e junho deste ano, 330 pessoas foram mortas, o que representa uma letalidade de 16%. A Bahia está à frente dos cinco estados analisados, entre eles o Rio de Janeiro.

O levantamento Raio-x das Ações de Policiamento foi feito pela Rede de Observatórios da Segurança. A metodologia utilizada foi o acompanhamento de eventos relacionados à criminalidade e violência que circularam em mídias, redes sociais e sites desses estados. Figuram no ranking da letalidade policial, após a Bahia, o estado de São Paulo (11,8%), Rio de Janeiro (10,4%), Pernambuco (3,5%) e Ceará (2,5%).

A expansão do tráfico de drogas na região Nordeste do país, aliada a operações de enfrentamento, são fatores que ajudam a explicar o primeiro lugar ocupado pela Bahia, segundo o coordenador da Rede de Observatórios e historiador, Dudu Ribeiro.

“O estado tem a maior taxa proporcional de letalidade policial do Brasil inteiro. A reorganização das organizações criminosas relacionadas ao tráfico de drogas tem influenciado os números e também a continuidade de estratégias que não dão conta de atacar essas questões, mas investe no confronto”, explica. Nas ações contabilizadas, cinco agentes de segurança foram mortos.

Um dos pontos levantados pelo historiador é o baixo resultado que essas ações trazem para a sociedade. Segundo a pesquisa, em todas as mais de 2 mil ações, foram registradas apenas 177 eventos de prisão, o que representa 8,5%.

“Estamos confrontando o discurso da produtividade da segurança pública. Quando vemos apreensão de drogas e armamentos, percebemos que as respostas não têm sido dadas a partir dos reais problemas da sociedade”, defende. Foram 177 eventos em que armas foram apreendidas em operações que não resultaram em morte em dois anos na Bahia.

Das mortes registradas pela Rede, quatro vítimas foram crianças e adolescentes. Samuel Caio dos Santos de Oliveira, que teve a vida interrompida com apenas 15 anos de idade, faz parte desta estatística. O menino estava próximo de casa quando foi atingido por um disparo de arma de fogo na Boca do Rio, em março deste ano. Embora familiares confirmem que os policiais chegaram no local atirando, a versão da Polícia Militar diz que os agentes foram recebidos a tiros.

Samuel Caio, além de jovem, era um menino negro e morador da periferia. Esse é o perfil da maior parte das vítimas de ações policiais, como explica Eldon Luís Neves, presidente da União de Negros pela Igualdade na Bahia (Unegro). “Quando analisamos as abordagens policiais em bairros nobres, não há uma conduta truculenta. Então há um direcionamento para a conduta policial na sociedade baiana, principalmente quando se trata da juventude periférica”, diz.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que analisa o ano de 2021 e foi divulgado em junho deste ano, aponta que a violência policial, na Bahia e do país, atinge homens, jovens e negros de maneira desproporcional. No último ano no Brasil, enquanto a mortalidade entre vítimas brancas diminuiu 31%, a taxa de vítimas negras cresceu 6%.

Bahia registra 11 chacinas em dois anos
Pessoas negras também formam maioria quando o assunto são as chacinas que ocorrem na Bahia. Ao todo, foram 11 durante o período analisado pelo estudo. Para ser considerada chacina, é preciso que pelo menos três pessoas sejam assassinadas, como aconteceu no início de março na comunidade Gamboa, em Salvador.

Na ocasião, uma operação da Polícia Militar resultou na morte dos jovens Alexandre dos Santos, 20 anos, Patrick Sapucaia, 16, e Cauê Guimarães, 22. Apesar de toda a comoção que as mortes causaram e atenção da mídia, os PMs não foram afastados.

O pesquisador e professor de estratégia no setor público, Sandro Cabral, analisa que há uma dificuldade em punir agentes que cometem crimes desse tipo, principalmente pela falta de provas. Por isso, ele defende que as polícias passem a utilizar câmeras nos uniformes como forma de coibir ações truculentas.

“A questão da punição é muito dúbia. Muitas vezes os policiais são afastados e depois reintegrados na corporação porque o processo de expulsão não foi bem feito […] Para haver punição de um policial que matou alguém é preciso ter repercussão na mídia, se esse crime causa grande comoção, as possibilidades de punição são maiores”, afirma. Sandro Cabral  também diz que o crime que costuma causar mais afastamento e expulsão de agentes é a extorsão e não o homicídio.

O historiador e pesquisador Dudu Ribeiro acredita que a não punição contribui para a sensação de legitimação das ações que resultam em mortes. “A chacina é um elemento legitimado pelos gestores e pelos comandos da polícia, sobretudo em operações de vingança. Elas não produzem efeito real, além de desumanizarem a comunidade porque agem contra qualquer pessoa do território”, critica.

Na última sexta-feira (12), o Ministério Público e a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP) deflagraram a ‘Operação Verdugo’, que tem como alvo seis policiais militares acusados de crimes de homicídio qualificado ocorridos em 2018 e 2019. A Justiça determinou o afastamento dos PMs da função pública por um período de um ano.

O que diz a SSP
Sobre os dados referentes às mortes em confronto, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP) informou, em nota, que as polícias Civil e Militar são pautadas para atuar dentro da legalidade e do “uso proporcional da força”. Casos que fujam a essas premissas devem ser denunciados para que as medidas legais sejam adotadas.

A pasta lembra ainda que está em processo de análise para a aquisição das ‘bodycams’, câmeras corporais que serão acopladas aos fardamentos com objetivo de oferecer cada vez mais transparência às ações policiais.

Ainda segundo a SSP, os dados da pesquisa estão em desacordo com a produtividade das ações policiais no período analisado, apresentando alguns números subnotificados. Só de drogas apreendidas entre os anos de 2020, 2021 e o primeiro semestre de 2022, foram cerca de 100 toneladas provenientes de operações das polícias Militar e Civil, além de ações realizadas também com as polícias Federal e Rodoviária Federal.

Nesse mesmo período, 98 fuzis foram tirados de circulação. Ainda segundo a SSP, apenas uma Operação da Polícia Civil, a Uno Corpus, foi responsável pela prisão de 516 pessoas. A Rede de Observatórios cita 177 eventos de prisão, o que não significa que foram 177 pessoas presas – pode ter havido mais de uma prisão por evento.

Relembre ações policiais que resultaram em mortes na Bahia:

Caso Ryan – Março de 2021

Uma operação de combate a aglomerações acabou com um menino de 9 anos morto no Vale das Pedrinhas, em Salvador, em março de 2021. A Polícia Militar informou que militares da 40ª Companhia Independente (CIPM/ Nordeste de Amaralina) encontraram criminosos e houve troca de tiros. Ryan Andrew Pereira Tourinho Nascimento teria sido encontrado por policiais no chão, baleado. Já segundo familiares, Ryan brincava na rua com amigos quando uma viatura da PM parou em frente aos meninos e uma policial efetuou os disparos que atingiram Ryan.

Caso Maria Célia e Viviane Soares – Junho de 2021

Maria Célia de Santana, 69 anos, e Viviane Soares, 32, foram mortas em junho de 2021, em Salvador. Ambas eram negras e foram atingidas por balas “perdidas” em frente às suas residências, durante uma perseguição policial no bairro do Curuzu. Elas foram socorridas para o Hospital Ernesto Simões, mas não resistiram aos ferimentos. A polícia confirmou que as mortes aconteceram durante um confronto entre policiais e criminosos que fugiam em um carro roubado. A família de Viviane acusa os policiais militares pelos crimes. De acordo com a PM, o caso está sendo apurado em Inquérito Policial Militar (IPM).

Caso Gamboa – Março de 2022

Uma ação da Polícia Militar na comunidade da Gamboa, na região da Avenida Contorno, deixou três mortos no dia 1º de março deste ano. Moradores da localidade denunciam uma abordagem agressiva e dizem que PMs já chegaram atirando. A Polícia Militar diz em nota que foi averiguar uma denúncia e, ao chegar ao local, foi recebida a tiros, tendo apenas reagido.

Caso Geovane Mascarenhas – Agosto de 2014

O jovem negro Geovane Mascarenhas, 22 anos, sumiu em 2014 depois de ser parado por uma blitz, no bairro da Calçada. Seu corpo foi encontrado esquartejado e incinerado. Depois de uma abordagem da Rondesp, o rapaz foi colocado na viatura, executado de joelhos por decapitação, esquartejado e queimado. Onze PMs foram denunciados pelo Ministério Público à Justiça. Neste mês, o CORREIO noticiou que o pai de Geovane encontrou um dos agentes na rua, em serviço, no Rio Vermelho.
“Ele estava com outros policiais ao lado de duas viaturas. Todos estavam fardados. Quando me viu, baixou a cabeça”, recorda Jurandy Silva de Santana, de 54 anos.

Chacina do Cabula – Fevereiro de 2015 

Em 6 de fevereiro de 2015, 12 jovens negros foram mortos durante uma operação das Rondas Especiais (Rondesp) no Cabula. As vítimas tinham entre 16 e 27 anos.  O inquérito do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) apontou legítima defesa dos PMs. O laudo contradiz o resultado da investigação realizada de forma paralela pelo Ministério Público, que denunciou os nove policiais por “execuções sumárias”.

O processo corre em segredo de Justiça no 1ª Juízo da 2ª Vara. A PM afirma que, dos nove policiais envolvidos, um foi demitido por outro fato e os demais permanecem em atividade. Correio da Bahia