(Betto Jr./Secom)

Nas duas primeiras doses, foi tudo nos conformes. Bem pontual, a autônoma Maria Carolina*, 53 anos, seguiu à risca o calendário para sua idade na vacinação contra a covid-19. Só que algo mudou na terceira dose. Poderia ter reforço do imunizante desde o final de dezembro, mas não tinha procurado o posto de saúde até essa semana.

O motivo, segundo ela, foi a própria mudança no cronograma. “Primeiro, seria depois de seis meses. Por isso, estou esperando completar os seis meses, em março. Como tudo ainda é incerteza, optei por esperar”, diz ela, que mora em uma cidade do interior da Bahia e afirma não entender as mudanças no tempo entre a segunda e a terceira doses. No início, o intervalo de seis meses caiu para cinco e, com o avanço da variante ômicron, passou a quatro.

O problema é que Maria Carolina está longe de ser a única. O alto número de atrasados para a terceira dose – e, em número menor, também para a segunda dose – acendeu a luz vermelha tanto para a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) quanto para a Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

Agora, a velocidade – e até uma possível estagnação – da imunização dos adultos está na mira dos gestores e dos profissionais de saúde.

“A gente está muito preocupado, porque estava indo numa velocidade boa no avanço da vacinação em relação em relação às primeiras doses, mas o que a gente tem observado nos alerta inclusive para mobilizar os municípios para que eles alimentem regularmente o sistema”, diz a coordenadora de imunização da Sesab, Vânia Rebouças.

No ano passado, a grande dificuldade era a chegada de vacinas no estado, já que os envios eram feitos de forma muito fracionada, por parte do Ministério da Saúde. Agora, o problema é mesmo porque as pessoas não estão indo aos postos de saúde. Em toda Bahia, apenas 27,1% do público-alvo – que chega a 11,1 milhões de pessoas – tinha recebido o reforço na última sexta-feira (11).

De acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde, a terceira dose é feita, preferencialmente, com o imunizante da Pfizer. No entanto, as vacinas da AstraZeneca e da Janssen também podem ser usadas como booster. Na semana passada, os lotes enviados pela Sesab aos municípios foram das duas últimas. “Também são vacinas candidatas para reforço da população. Não está faltando imunizante. Temos vacina em quantidade suficiente. O que nós precisamos é que as pessoas retomem e se conscientizem”, explica Vânia.

Razões 
Em Salvador, o percentual de cobertura é maior – 42% – mas ainda está longe de ser o ideal. Mais de 540 mil pessoas estavam com a vacina em atraso na última quinta-feira (10). A maior parte dos faltosos era da faixa etária dos 40 aos 49 anos. Segundo a SMS, eram 146 mil pessoas. Em seguida vinham os de 50 a 59 anos, que passavam dos 120 mil.

Por isso, na quarta-feira (9), a SMS chegou a realizar um mutirão da terceira dose, permitindo também a vacinação de moradores de outras cidades da Bahia. “Já tivemos o aprendizado de 2021, que mostrou que a vacinação é efetiva para reduzir o número de casos, a taxa de ocupação de leitos, os óbitos. Isso está mais do que evidente. Quando a gente tem uma baixa cobertura vacinal, a gente deixa brechas. Isso impulsiona o vírus a se manter em evidência”, alerta a coordenadora de imunização da SMS, Doiane Lemos.

Segundo ela, o município tem adotado diferentes estratégias a todo o tempo, tentando atrair os atrasados, inclusive com dias exclusivos para o retorno de imunizantes específicos. Hoje, a vacinação de adultos está majoritariamente concentrada nos dias da semana – os últimos sábados têm sido destinados à campanha das crianças. Os domingos foram suspensos porque estariam tendo baixa demanda.

“A gente observa que há uma queda na procura em horários mais tarde e os finais de semana não estavam sendo tão efetivos quando a gente deseja. Os adultos querem curtir o final de semana, sair para beber, principalmente aos domingos. Desde sexta-feira à tarde, começa a queda no índice de vacinação”, lamenta.

A avaliação da SMS é a mesma da Sesab, em alguns aspectos: para muita gente, há uma falsa sensação de segurança no ar. Há quem acredite que está protegido apenas com duas doses; talvez até só com uma. Mas não é bem assim.

“Os níveis de proteção vão caindo ao longo do tempo e vamos ficando vulneráveis. Essa é uma atitude perigosa, porque a pessoa se expõe e pode deixar outras pessoas expostas dentro da própria casa. É um berço para o vírus. A gente se preocupa bastante porque, se a gente está numa velocidade baixa (de vacinação), o vírus não está”, alerta Doiane.

A coordenadora estadual de imunização, Vânia Rebouças, também destaca a importância de os municípios preencherem os sistemas de forma regular. “Estamos atualizando o banco diariamente, de domingo a domingo e precisamos ter o feedback deles para fazer uma análise fidedigna. Se vacinam e não registram, vamos ficar com uma cobertura muito baixa”.

Quatro semanas 
Outro fator que tem contribuído para o alto número de atrasados é a própria ômicron. A explosão de casos de covid-19 em janeiro, provocados pela variante mais transmissível até então, coincidiu com o período em que muita gente deveria estar tendo a terceira dose aplicada no braço. A estudante de Medicina Katheryne Carvalho, 23, poderia receber o imunizante a partir do dia 29 de dezembro, mas, na data, ela já tinha viajado para passar o Réveillon em Maceió (AL).

“Peguei covid justamente no Ano Novo, lá em Maceió. As amigas que estavam no mesmo apartamento que eu positivaram, então, mesmo assintomática, fiz o teste e descobri que estava com covid também”, conta ela, que não teve nenhum sintoma mas permaneceu em isolamento até o dia 10 de janeiro.

Foi a segunda vez que teve a doença – a primeira havia sido em 2020, antes de se vacinar. Só que a recomendação do Ministério da Saúde e dos infectologistas é que as pessoas que se infectaram com o Sars-cov-2 esperem quatro semanas para tomar a dose de reforço.  Ainda assim, Katheryne diz que se sente mais segura por ter tomado as primeiras doses.

“É triste ver que muitos estão deixando de aderir e acreditar na vacina porque pessoas vacinadas foram infectadas nos últimos dias. Não observam que os sintomas em geral estão muito mais leves, apesar de ter mais gente contaminada”, pondera a estudante, que atribui esse movimento a influências políticas e ideológicas contra a vacinação.

Esse também foi o caso da jornalista Adrielly Lima, que tinha a dose de reforço programada para 9 de janeiro. Quando voltou de viagem, na mesma época, primeiro vieram crises de alergia. Na terceira semana de janeiro, testou positivo para covid-19. Filha de profissionais da área de saúde, ela acaba ficando mais exposta. Pouco depois que sua mãe foi infectada, Adrielly também ficou doente.

Para ela, ver tanta gente com a vacina atrasada também é um sinônimo de falta de responsabilidade afetiva. “Conheço pessoas que acreditam que duas doses são mais do que suficientes e nunca têm tempo para ir a um posto próximo”, lamenta.

A advogada e residente jurídica da Defensoria Pública do Estado Caroline Oliveira, 28, também terá que esperar um pouco mais. Ela nem teve covid, mas uma amigdalite na primeira semana deste mês. Ainda assim, a recomendação de seu médico também foi que esperasse. Caroline deveria ter tomado a terceira dose esta semana.

“Já estava aguardando ansiosa, marcando no calendário e acompanhando diariamente o Instagram da prefeitura para saber quando tomaria. Ainda tomo meus cuidados, mas se existe uma terceira dose, é porque é necessário esse reforço”, argumenta, citando a importância de um compromisso coletivo.

“Se tiver uma quarta, quinta dose, irei tomar e incentivo toda a minha família e amigos. Acho que muitos estão nessa situação por terem relaxado, tomaram duas doses e minimizam a doença e suas sequelas”, diz.

Sintomas
Com os índices de transmissão mais altos desde o começo da pandemia no mês passado, não é impossível que pessoas assintomáticas tenham sido vacinadas antes de saber que estavam com o Sars–cov-2. Ou seja: não teriam respeitado as quatro semanas de intervalo para a recuperação. Mas o epidemiologista Marcio Natividade, doutor em Saúde Pública e professor do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), não vê muitos problemas.

“Existe a possibilidade de manifestações mais prolongadas dos sintomas da doença, mesmo assim, serão sintomas que muito provavelmente podemos descartar a possibilidade do agravamento e a necessidade de hospitalização. Mesmo nessa situação, a vacina cumpriu seu objetivo”, diz. Ele próprio passou por essa situação – acabou se vacinando com o reforço sem saber que estava positivo. “Desconfiei que os sintomas que imaginava ser uma reação da terceira dose se prolongaram”, explica.

Há quem já tenha decidido, por ora, que não tomará a terceira dose. Esse é o caso do administrador de empresas e advogado Luciano Santos, 59. Ele recebeu as duas primeiras e chegou a ter covid duas vezes – uma antes das vacinas, outra agora, em janeiro. Deveria tomar o reforço no último dia 29.

“Tem tanta informação desencontrada que fica com um pouco de descrédito”, avalia. “O número de mortes realmente reduziu, mas não acho que a terceira dose seja necessária. Tomei as duas e acho que é mais do que suficiente, porque estou vendo que as pessoas conseguem se infectar também com a terceira dose”, opina.

Mudanças 
De fato, algumas estratégias de combate à covid-19 mudaram ao longo desses dois anos de pandemia – e, com a vacinação, não seria diferente. No entanto, a biomédica e neurocientista Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid, explica que as alterações são justamente porque a realidade também tem mudado.

“Quando pensamos no intervalo de seis meses, não tinha a ômicron. A redução desse intervalo foi de acordo com o novo cenário que a gente está tendo. Foi para harmonizar e até mesmo tentar frear o impacto da ômicron no país”, explica.

Ela reforça que não há incerteza nas decisões. As diretrizes poderiam continuar as mesmas se não houvesse o surgimento de novas variantes de preocupação, o que pode ser atribuído tanto à falta de políticas públicas específicas quanto aos comportamentos de exposição.

“A gente muda as estratégias não porque não tem certeza das coisas ou porque não tem confiança, mas porque a situação está mudando. Precisamos reforçar que, se as nossas medidas estão sendo atualizadas é porque o cenário é um pouco diferente, mas as estratégias continuam sendo as mesmas de sempre”, diz.

No cenário da ômicron, a tendência tem sido a mesma ao redor do mundo: a maior parte dos pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) são aqueles que não estão vacinados ou não têm vacinação completa. E, hoje, o esquema vacinal só é considerado completo se incluir a terceira dose – ao menos para aqueles que têm indicação para isso, que são os maiores de 18 anos.

“O indivíduo com vacinação completa está mais protegido. Caso positivo para o vírus, ele irá manifestar sintomas leves ou quase nenhum”, enfatiza o epidemiologista Marcio Natividade, professor do ISC/Ufba.

Para o professor, a cobertura vacinal já teve momentos mais acelerados, mas não está necessariamente estagnada. “Os números avançam de forma lenta”, pondera Natividade, explicando que a lentidão na vacinação e a baixa adesão à dose de reforço contribuem para o aumento de sintomas graves e, como consequência, das hospitalizações. “Se o vírus continuar a circular com força, teremos novas infecções e alta probabilidade do surgimento de outras variações”.

*Nome fictício 

Com vacinação estagnada, Israel enfrenta alta de casos

Ainda que ampliar a cobertura vacinal da terceira dose deva ser um objetivo, não existe número mágico. Isso porque, apesar de gestores ao redor do mundo terem criado metas de vacinação desde o começo da pandemia, como atingir 70% ou 80% da população vacinada, exemplos práticos têm mostrado que esse nem sempre é o melhor modelo se, a partir daí, a cobertura estagnar.

Israel, que se destacou no começo por ter conseguido avançar na imunização, no ano passado, agora enfrenta números recordes de covid-19. O país estagnou na casa dos 65% da população com as duas doses contra a covid-19, como explica a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19.

“Tem muita gente não vacinada ou sem o esquema completo porque eles estagnaram. Isso é muito complicado e tem a ver com essa falsa sensação de que existe um número redondinho, que se atingir esse número, está tudo certo”, diz. Desde janeiro, Israel já disponibiliza até mesmo uma quarta dose para pessoas acima de 60 anos.

Por isso, ela também acredita que não devemos mais pensar em um percentual mínimo de cobertura da terceira dose a ser atingido, mas em imunizar a maior quantidade possível de pessoas. “Temos que oferecer vacinas para o máximo que a gente conseguir independente de passar de um número ideal. A proteção não é demais”, acrescenta.

O problema de não avançar na cobertura é justamente que a transmissão não é controlada. Assim, novas cepas podem surgir. “A culpa não é das vacinas, mas da transmissão”, explica, reforçando que ainda se trata de uma pandemia, ainda que algumas correntes tenham passado a defender abordagens para enfrentamento de uma endemia.

“As pessoas usam isso para justificar que não há muito o que fazer e que a gente tem que seguir adiante. Isso está muito errado. As pessoas precisam entender que a covid faz parte do cotidiano e que ainda estamos em pandemia”. Correio da Bahia