Da ministra Damares Alves ao médium João de Deus, o noticiário foi invadido por uma série de questionamentos sobre os abusos da fé. Os dois estão em lados opostos nas narrativas que envolvem crença e assédio sexual e foram intensamente julgados nas redes sociais ao longo das duas últimas semanas. Damares foi vítima de quem “pregava” a palavra daquilo que a futura ministra de Bolsonaro acreditava.

 

Já João de Deus foi algoz das pessoas que nele acreditavam. E o tom misógino e preconceituoso da sociedade prevaleceu. A futura comandante do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos foi alvo de chacota desde que um relato dela sobre ver a imagem de Jesus numa goiabeira povoou as redes sociais segundo informações do Bahia Notícias.

 

O vídeo foi editado para parecer um devaneio estereotipado das igrejas neopentecostais brasileiras. Realmente, fora do contexto, uma senhora narrando ter visto Jesus subindo num pé de goiaba e pedindo para que ele descesse poderia ser cômico. Não era o caso por um fato simples: Damares Alves usou a própria fé para explicar como resistiu a um trauma de ter sido estuprada por um “falso pastor”, nas palavras dela, aos 6 anos de idade.

 

Alçada à condição de ministra numa pasta que deve respeitar os direitos de minorias, Damares teve a vida vasculhada. Em meio aos vídeos em que ela aparece como pastora, o trecho da goiabeira que viralizou não mostra o relato na íntegra. A alegoria de Jesus – que poderia ser qualquer outra, caso a mesma não fosse cristã – se tornou uma metáfora para a “salvação” dela diante da série de abusos sofridos na infância.

 

Ainda assim, Damares foi ridicularizada por ver “Jesus na goiabeira”. Ninguém sequer questionou quem foi o pastor que cometeu o estupro. Parte das críticas, inclusive, partiu de figuras públicas que são contrárias ao governo de Jair Bolsonaro e aproveitaram o trecho editado para atacar a qualidade técnica da ministra.

 

Acontece que Damares não deveria ser julgada pela fé, a não ser que essa fé passe a atrapalhar sua atuação na função estatal. No caso da educação sexual de crianças e adolescentes, por exemplo, a própria ministra já defendeu ser favorável mesmo num governo conservador como o atual.

 

Na outra ponta dessa narrativa cruel, o médium João de Deus foi acusado de assédio sexual por algumas centenas de mulheres que passaram pelo centro de atendimento espírita dele no interior de Goiás. Ao tempo em que os relatos apareceram, um sem número de pessoas tentou minimizar o fato de que a celebridade mediúnica era sim um ser desprezível, que abusava da fé das pessoas para assediá-las.

 

João de Deus ainda vai ser julgado, porém é impossível desacreditar que ele tenha feito as atrocidades que fez. Ainda assim, a misoginia e o preconceito que permeiam a nossa sociedade ainda levantam questionamentos sobre a veracidade dos depoimentos – de abusos que acontecem há mais de 30 anos e foram jogados para debaixo do tapete por inúmeras famílias que foram ludibriadas pela fé.

 

Enquanto casos como os de Damares e de João de Deus continuarem existindo e sendo minimizados pela sociedade, é possível que não deixemos o estado de barbárie que tanto reclamamos. E estaremos fadados a conviver com notícias de abusos nas mais diversas religiões, vide padres pedófilos, Lucas Terra e tantos outros episódios em que perdemos a crença na humanidade.

 

A fé move montanhas. E também esconde monstros. Este texto integra o comentário desta quarta-feira (19) para a RBN Digital, veiculado às 7h e às 12h30, e para as rádios Excelsior, Irecê Líder FM, Clube FM e RB FM. (Por Fernando Duarte).