A lista é grande. Na Bahia, das 38.213 famílias assentadas por projetos de reforma agrária do Governo Federal, nenhuma possui o título definitivo de posse da terra. Elas estão espalhadas por 549 assentamentos criados nas últimas três décadas em várias partes do estado. A falta do título também atinge cerca de 6.714 famílias que vivem em quatro reservas extrativistas da Bahia, e outras 4.234 famílias que moram em 152 projetos de fundo de pasto, as chamadas comunidades tradicionais.

A situação se repete em todos os estados do Brasil, porém a demora é maior na região Nordeste. De acordo com o Ministério da Agricultura, das 238.301 famílias assentadas na região, através de projetos de reforma agrária, apenas 11.985 receberam os títulos de posse, o equivalente a cerca de 5% do total. No país existem 9.443 assentamentos registrados, onde vivem cerca de 974.261 famílias.

Mas apenas 10% delas receberam os títulos definitivos de terra. Para tentar agilizar o processo, o Governo Federal lançou esta semana o Programa Luz no Fim do Túnel.  O nome é uma referência a longa espera enfrentada por muitas famílias. O objetivo é entregar pelo menos 25 mil títulos de posse a assentados da reforma agrária até o fim deste ano.

“No primeiro semestre, o Incra passou por um processo de diagnóstico estratégico. Conseguimos, assim, chegar nesse planejamento e retomar as ações finalísticas. Essa é uma oportunidade para a obtenção de resultados, independente de quaisquer circunstâncias adversas que venhamos a enfrentar”, afirma João Carlos de Jesus Corrêa, presidente do INCRA.

No Nordeste o projeto piloto vai começar no Piauí. O documento de posse da terra facilita o acesso ao crédito de projetos voltados para a agricultura familiar. A Ação acontece no momento em que o INCRA completa 49 anos de criação.

“Em quase meio século de existência do Incra foi alcançado um índice muito baixo de títulos definitivos concedidos, especialmente no Nordeste. Essa situação é grave e, por isso, a titulação é o foco principal da nossa operação e da atual gestão do Incra”, afirma o diretor de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento, Dougmar Nascimento das Mercês.

O programa prevê gastar até R$ 8,5 milhões de reais com a emissão dos 25 mil títulos, e mais de R$ 170 milhões de reais para construção de 5 mil casas em assentamentos. O programa prevê apoio também para o desenvolvimento de atividades produtivas nos lotes.

Em nota ao Correio, a Superintendência Regional do Incra na Bahia informou que tem trabalhado no intuito de titular as famílias beneficiadas da reforma agrária, e que nos próximos 90 dias, 94 famílias vão ser contempladas com títulos definitivos. Estes primeiros títulos serão entregues nos municípios de Encruzilhadas, Xique-Xique e Barra, no oeste do estado.

O órgão admitiu ainda que a titulação não era prioridade entre as ações da instituição, mas que nos últimos dois anos a unidade regional vem preparando áreas capazes de titular outras 1.256 famílias no estado.“Antes não tínhamos assentamentos aptos para titular, hoje nós temos”, afirma o superintendente regional do Incra na Bahia, Giuseppe Serra Seca Vieira.

No processo de reforma agrária e desapropriação de terra, os beneficiários recebem primeiro um Contrato de Concessão Real de Uso, que é válido por 10 anos. Só depois deste período os lotes podem ser titulados.

Além do Contrato de Concessão, para receber os títulos de posse dos lotes as famílias beneficiárias precisam ter, entre outros requisitos, o Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais, georreferenciamento e certificado fornecido pelo Sistema de Gestão Fundiária.

A demora e a forma como será feita a titulação das terras preocupam os representantes dos assentados. “Defendemos que a questão do título de posse deve acontecer depois que todos os benefícios e apoios, garantidos pelo programa de reforma agrária, estejam disponibilizados. Esta ação de emissão dos títulos está acontecendo sem que os recursos totais de estrutura tenham sido esgotados”, afirma Edno Andrade, Coordenador do Movimento de Trabalhadores, Assentados, Acampados e Quilombolas da Bahia (CETA).

Já a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), afirma que a emissão dos títulos neste momento coloca em risco as comunidades. “Esta política de titulação individual, anunciada agora, coloca as famílias em situação vulnerável, porque depois de receber o documento, muitas vão ser assediadas para vender as áreas.  O Incra não investiu nestes assentamentos. Eles precisam ter estrutura e apoio para produzir. Mas diante do aquecimento do negócio de terras, estas comunidades estão vulneráveis”, pontua o advogado Mauricio Correia, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR). A associação representa na justiça cerca de 30 comunidades de assentados na Bahia.

Os advogados alegam ainda que nos últimos dois anos, os recursos para novos assentamentos e desapropriações ficaram praticamente paralisados. “O Incra perdeu o controle sob quem de fato ocupa os lotes. Existem assentamentos em que há famílias até sem contrato de concessão. Outros processos em andamento chegaram ainda a ser arquivados indevidamente. Isto tem inclusive aumentado a violência, na medida em que muitos proprietários, que não foram indenizados, estão ameaçando as famílias e invadindo acampamentos. As consequências são muito graves”, completa Correia.

Na Bahia, a maior concentração dos assentamentos está na região Oeste do estado, nos territórios da Bacia do Rio Grande e Velho Chico. Nestas áreas existem 97 assentamentos e 12.171 famílias beneficiárias da reforma agrária. Já no Litoral, Baixo Sul e Extremo Sul concentram-se 151 assentamentos onde vivem 8.026 famílias.

MAIS DE 200 BENEFICIÁRIOS ABANDONARAM SUAS TERRAS NO ESTADO

O Incra promete mais agilidade na concessão da posse, mas também mantem constante o combate ao abandono dos lotes já concedidos. Segundo o último levantamento, cerca de 208 casas localizadas em 23 assentamentos rurais da Bahia estão vazias. São unidades instaladas em núcleos de reforma agrária de 22 municípios baianos.

Em junho deste ano, o Incra notificou estes assentados para que justificassem a ausência no local. A ação de notificação ocorre pelo menos três vezes ao ano. Os assentados notificados estão em 11 áreas do estado. Nas regiões do Piemonte do Paraguaçu, Região Metropolitana de Salvador, Sertão do São Francisco, no Território do Sisal, no nordeste do estado, no litoral, na região ao redor de Feira de Santana e no extremo sul.

Quem não apresentar alegações até 15 dias depois da notificação, corre o risco de ser excluído do programa e perde o direito ao lote. Os coordenadores do movimento dizem que são casos isolados.Mas são as regiões Oeste e a Chapada Diamantina que lideram o número de unidades abandonadas. No Oeste do estado, 68 famílias do assentamento Dom Ricardo, no município de Riachão das Neves, não foram encontradas nas unidades.

Já na Chapada, 45 beneficiários de 4 assentamentos foram notificados nos municípios de Lajedinho, Andaraí, Nova Redenção, Iraquara e Lençóis. “Quase 100% destes casos são de assentados que não receberam apoio de crédito para começar a própria produção, não tem estrutura, e acabam desenvolvendo outras atividades para manter a sobrevivência. Mas eles saem para trabalhar, por exemplo em outras colheitas, e voltam para o assentamento”, argumenta Edno Andrade, da CETA.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PEDE AGILIDADE EM QUILOMBOS 

A demora na entrega dos títulos atinge não apenas os assentamentos destinados a reforma agrária. As comunidades quilombolas também se queixam do problema. Pelo menos 1.747 comunidades rurais de quilombo esperam pela titulação definitiva. Nos últimos 29 anos, desde que o Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) foi criado, apenas 124 títulos definitivos de posse foram expedidos no país.

Os dados foram divulgados pelo Ministério Público Federal na Bahia (MPF-BA), que esta semana acionou o Incra e a União por omissão na titulação das terras do Quilombo Caimbogo Velho, em Cachoeira, no recôncavo baiano. A comunidade foi reconhecida como quilombola há 15 anos, mas ainda não tem o Relatório de Identificação e Demarcação  (RITD), obrigatório para posse.

O documento foi solicitado em 2013, mas o processo não avançou. Para os procuradores, o Incra e a União se omitiram do dever legal, ao não procurarem estabelecer convênios com o governo ou com os municípios para finalizar os processos. “A omissão do Incra e da União sujeita a comunidade quilombola a prejuízos morais, físicos e psicológicos devido a situação de instabilidade originada pela possibilidade de perda das terras”, afirma nos autos do processo. Eles pedem  que o INCRA seja obrigado a realizar os estudos antropológicos em 180 dias, e que finalize o processo em 12 meses, sob multa diária de R$ 10 mil. Correio da Bahia