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O ano de 2019 foi marcado por uma queda consistente no número de assassinatos no país. O índice nacional de homicídios mostra que, em nove meses, houve uma diminuição de 22%. Por outro lado, as mortes cometidas pela polícia aumentaram no 1º semestre. E a superlotação e o número de presos provisórios voltaram a crescer neste ano.

Na retrospectiva, o Monitor da Violência mostra números exclusivos levantados durante o ano e ouve especialistas do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, parceiros do projeto, para mostrar as causas por trás dos dados e apontar caminhos para 2020.

Assassinatos

O Brasil teve 30.864 mortes violentas de janeiro a setembro deste ano – uma a cada 13 minutos, em média. É um número ainda alto, mas menor que o registrado no mesmo período do ano passado. A queda é de 22%. Houve, em 2018, 39.527 mortes nos primeiros nove meses.

Os dados, tabulados mês a mês, fazem parte de uma ferramenta exclusiva criada para possibilitar um diagnóstico em tempo real da violência e cobrar transparência por parte dos governos: o índice nacional de homicídios.

Para Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a queda consolida uma tendência que se nacionalizou no início de 2018 e que ainda não pode ser totalmente explicada.

“A queda dos homicídios é uma boa notícia e está associada a múltiplos fatores. Porém, na empolgação com números positivos depois de vários anos de más notícias, não estamos dando a devida atenção para a importância de termos sistemas de informações confiáveis e auditáveis. Infelizmente a queda nos homicídios não está sendo acompanhada do crescimento da transparência e da prestação de contas sobre o que foi feito e o que está sendo feito. Só assim poderemos saber se a tendência de redução é consistente e continuará a ocorrer em 2020.”

Para Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, ao analisar a tendência de queda, que já se mantém desde 2018, vale observar as políticas públicas aplicadas pelos governos estaduais – principalmente do Norte e do Nordeste – e as dinâmicas das cenas criminais no Brasil.

“Essa curta história começa em 2017, com racha entre facções e mortes nos presídios que promoveram recorde de assassinatos naquele ano. Ao contrário do esperado, o efeito bola de neve de mortes nas prisões não veio e a tensão no interior do sistema penitenciário nacional arrefeceu. A própria possibilidade dos estados, por meio da inteligência nos presídios, mapear mandantes e transferi-los para o sistema prisional, ajudou a evitar novos massacres. A diminuição dos conflitos se estendeu para o lado de fora, num mercado de drogas com participantes que já compreendem os custos dos conflitos e o peso que as mortes provocam na redução dos lucros”, diz.

Bruno Paes Manso diz que as políticas estaduais precisam continuar focando na redução dos homicídios. “Nenhuma sociedade conseguiu acabar com a venda de drogas. E isso nunca vai ocorrer. Já o traficante que mata ou ameaça de morte a população em benefício de seus lucros deve ser investigado e punido. O mesmo com milicianos ou policiais integrantes de grupos de extermínio, que matam em benefício dos próprios ganhos pessoais ou do grupo. Os feminicídios, mortes de mulheres e crianças por causa do gênero, capazes de desestruturar famílias por diversas gerações, também devem ser prioridade. E demandam abordagens e técnicas diferenciadas por envolverem muitas vezes ambientes domésticos.”

Mortes por intervenção policial

Apesar da queda nos assassinatos em geral, houve um aumento no número de pessoas mortas pela polícia. O dado, que não está incluído nas divulgações mensais em razão da dificuldade em obtê-lo de forma sistemática, foi coletado e divulgado em outubro.

O Brasil teve no 1º semestre deste ano 2.886 pessoas mortas por policiais – 120 a mais que no mesmo período de 2018. A alta no dado, no entanto, não é uma tendência nacional: a maioria dos estados teve queda nos registros nos primeiros seis meses de 2019.

Das 27 unidades da federação, 15 tiveram uma queda nas mortes cometidas pela polícia, 10 registraram uma alta e um se manteve no mesmo patamar. Goiás foi o único estado do Brasil que se recusou a passar os dados.

Para Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o aumento da letalidade produzida em intervenções policiais preocupa e reduzi-la devia ser uma meta dos Executivos estaduais, assim como objeto de atenção dos Ministérios Públicos.

“Episódios como o ocorrido em Paraisópolis, em São Paulo, cuja ação desastrada da Polícia Militar resultou em nove jovens mortos pisoteados, indicam que o uso da força policial deve ser avaliado em um contexto mais amplo, e não apenas em tiroteios ou supostos confrontos. Estas ações colocam em xeque a credibilidade das polícias e fragilizam a confiança que a população deposita em seus profissionais. É importante que o controle da atividade policial seja uma meta a ser perseguida por diferentes instâncias do Poder Público, mas o que se viu ao longo de 2019 foi justamente o contrário, com o governo federal tentando a aprovação de um projeto de lei que amplia ainda mais o excludente de ilicitude para os policiais”, afirma.

“Precisamos focar nossos esforços em garantir melhores condições de trabalho para os profissionais de segurança pública, garantindo salários dignos, políticas de saúde e o instrumental adequado ao exercício da função. Mas também precisamos ser capazes de fazer o controle da atividade policial, o que só poderá ser feito com a revisão de protocolos, com a divulgação de dados e com a punição dos casos ilegítimos.”

Pedro Benetti e Fernanda Cruz, pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP, dizem que os números altos revelam uma realidade alarmante, especialmente para o Rio de Janeiro e o Pará, dois estados que apresentaram crescimento expressivo das mortes.

“No Rio de Janeiro, muitas dessas mortes ocorreram em virtude de operações policiais. As operações policiais no estado custaram, somente neste ano, a vida de seis crianças: Ketellen Gomes (5), Ágatha Félix (8), Kauê Santos (12), Kauã Rozário (11), Kauan Peixoto (12) e Jenifer Gomes (11)”, dizem.

“No caso paraense, após a chacina do Guamá, na qual três policiais militares participaram das 11 mortes ocorridas, o governador Helder Barbalho veio a público afirmar que o Estado não recuaria e que manteria suas políticas de combate à criminalidade. O Pará ocupa o primeiro lugar na morte de policiais no país e registra mortes de civis seguidas das mortes dos policiais, sugerindo a possibilidade de vingança como motivação.”

Para Pedro Benetti e Fernanda Cruz, a escolha por políticas de enfrentamento, em vez de investimento em prevenção, inteligência, técnica e ciência, traz consequências em diferentes níveis – desde o econômico, com o fechamento do comércio nas áreas em que ocorrem as operações, a interrupção da circulação de trabalhadores na cidade e perda de bens materiais, até o exercício da cidadania, afetando o funcionamento de hospitais, escolas e outros equipamentos públicos de prestação de serviço à população.

“Na previsão orçamentária de 2020 elaborada pelo governo estadual do Rio de Janeiro, há corte de 86% dos recursos da Polícia Técnica, que receberia apenas R$ 840 mil dos quase R$ 12 bilhões destinados à segurança pública.”

De acordo com Pedro Benetti e Fernanda Cruz, os responsáveis pelas políticas de segurança pública têm afirmado publicamente a necessidade de sustentar diretrizes baseadas no confronto. Em seus discursos, afirmam os pesquisadores, governadores estaduais se antecipam às apurações para falar em defesa das operações policiais.

“Além da necessidade de reorientação das políticas de segurança pública, é preciso rigor nas investigações, a fim de averiguar a conduta dos policiais nas ocorrências que terminaram com a morte de civis e punir aqueles que cometeram excesso. Rigor semelhante é esperado nas investigações sobre as mortes dos policiais.” Informações do G1